ANTROPOLOGIA DA SAÚDE - Antropologia (2025)

Colegio Militar Tiradentes

Thainaira Cristine 11/10/2024

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<p>SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros</p><p>ALVES, PC., and RABELO, MC. orgs. Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando</p><p>fronteiras [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ; Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 1998.</p><p>248 p. ISBN 85-7316-151-5. Available from SciELO Books .</p><p>All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non</p><p>Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.</p><p>Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição -</p><p>Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.</p><p>Todo el contenido de esta obra, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons</p><p>Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.</p><p>Antropologia da saúde:</p><p>traçando identidade e explorando fronteiras</p><p>Paulo César Alves E</p><p>Miriam Cristina Rabelo</p><p>Orgs.</p><p>ANTROPOLOGIA DA SAÚDE</p><p>TRAÇANDO IDENTIDADE E</p><p>EXPLORANDO FRONTEIRAS</p><p>FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ</p><p>Presidente</p><p>Eloi de Souza Garcia</p><p>Vice-presidente de Ambiente, Comunicação e Informação</p><p>Maria Cecília de Souza Minayo</p><p>EDITORA FIOCRUZ</p><p>Coordenadora</p><p>Maria Cecília de Souza Minayo</p><p>Conselho Editorial</p><p>Carlos E. A. Coimbra Jr.</p><p>Carolina M. Bori</p><p>Charles Pessanha</p><p>Hooman Momen</p><p>Jaime L. Benchimol</p><p>José da Rocha Carvalheiro</p><p>Luiz Fernando Ferreira</p><p>Miriam Struchiner</p><p>Paulo Amarante</p><p>Paulo Gadelha</p><p>Paulo Marchiori Buss</p><p>Vanize Macêdo</p><p>Zigman Brenner</p><p>Coordenador Executivo</p><p>João Carlos Canossa P. Mendes</p><p>ANTROPOLOGIA DA SAÚDE</p><p>TRAÇANDO IDENTIDADE E</p><p>EXPLORANDO FRONTEIRAS</p><p>PAULO CÉSAR ALVES E</p><p>MIRIAM CRISTINA RABELO</p><p>Organizadores</p><p>R E L U M E D U M A R Á</p><p>Rio de Janeiro</p><p>1998</p><p>© Copyright 1998, dos autores</p><p>Direitos cedidos para esta edição à</p><p>DUMARÁ DISTRIBUIDORA DE PUBLICAÇÕES LTDA.</p><p>Rua Barata Ribeiro, 17/Sala 202</p><p>22011 -000 - Rio de Janeiro - RJ</p><p>Tel.: (021) 542-0248 Fax: (021) 275-0294</p><p>EDITORA FIOCRUZ</p><p>Rua Leopoldo Bulhões, 1480 - Térreo - Manguinhos</p><p>21041 -210 - Rio de Janeiro - RJ</p><p>Tel.: (021) 590 3789 Ramal 2009 Fax: (021) 280 8194</p><p>Editoração</p><p>Dilmo Milheiros</p><p>Capa</p><p>Simone Villas Boas</p><p>Catalogação na fonte</p><p>Centro de Informação Científica e Tecnológica</p><p>Biblioteca Lincoln de Freitas Filho</p><p>A474a Alves, Paulo César (org.)</p><p>Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fron­</p><p>teiras/organizado por Paulo César Alves e Miriam Cristina Rabelo. -</p><p>Rio de Janeiro: Editora Fiocruz/ Editora Relume Dumará, 1998.</p><p>248p.</p><p>1. Antropologia. 2. Processo saúde-doença. I. Rabelo, Miriam</p><p>Cristina.</p><p>CDD - 20ª ed. - 301</p><p>SUMÁRIO</p><p>Introdução 7</p><p>O status atual das ciências sociais em saúde no Brasil: tendências</p><p>Paulo César Alves e Míriam Cristina Rabelo 13</p><p>Construção da identidade da antropologia na área de saúde:</p><p>o caso brasileiro</p><p>Maria Cecília de Souza Minayo 29</p><p>Epidemiologia e antropologia médica: a in(ter)disciplinaridade possível</p><p>Gil Sevalho e Luís David Castiel 47</p><p>Antropologia médica e epidemiologia. Processo de convergência ou</p><p>processo de medicalização?</p><p>Eduardo L. Menéndez 71</p><p>Relações entre epidemiologia e antropologia</p><p>Mabel Grimberg 95</p><p>Repensando os estudos sobre representações e práticas em saúde/doença</p><p>Paulo César Alves e Míriam Cristina Rabelo 107</p><p>Médico ferido: Omolu nos labirintos da doença</p><p>Andrea Caprara 123</p><p>Psicoterapia, depressão e morte no contexto da AIDS</p><p>Daniela Knauth 139</p><p>De doente a "encantado" - O conceito de mecanismo de defesa</p><p>constituído culturalmente e a experiência de uma vítima de "espírito mau"</p><p>em uma comunidade rural na Amazônia</p><p>Mark A. Cravalho 157</p><p>Identidade feminina e nervoso: crises e trajetórias</p><p>Maria Gabriela Hita 179</p><p>O corpo que sabe - Da epistemologia Kaxinawá para uma antropologia</p><p>médica das terras baixas sul-americanas</p><p>Cecilia McCallum 215</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Paulo César Alves</p><p>Miriam Cristina Rabelo</p><p>A presente coletânea visa definir, problematizar e explorar o potencial da</p><p>abordagem antropológica às questões relativas a saúde e doença. Na grande maio­</p><p>ria dos capítulos esse objetivo é logrado através de uma discussão das relações da</p><p>antropologia médica (ou da saúde) com disciplinas fronteiriças no campo da saú­</p><p>de, mais especificamente com a epidemiologia, a psiquiatria e a psicologia. Ao</p><p>abordar a forma como a antropologia interage, questiona, critica e/ou complementa</p><p>estas disciplinas, os autores de fato iluminam a especificidade do olhar antropo­</p><p>lógico sobre a saúde/doença.</p><p>Embora todos os artigos busquem esclarecer e delimitar o campo de atuação</p><p>da antropologia médica, não comungam de uma visão única e fechada acerca das</p><p>características internas e fronteiras desse campo. Tampouco há entre os autores</p><p>uma concordância sobre o modo ideal de se construir as relações da antropologia</p><p>médica com outros campos do saber, ou mesmo sobre a possibilidade de uma real</p><p>interdisciplinaridade, dadas as diferenças na definição dos objetos e métodos.</p><p>Assim, antes que defrontar-se com uma única tese defendida segundo diferentes</p><p>e novos argumentos em cada um dos capítulos, o leitor terá a sua frente a possibi­</p><p>lidade de confrontar distintas visões sobre o papel e potencial da antropologia</p><p>médica nos estudos sobre a saúde. Nenhum dos artigos se contenta com o simples</p><p>estabelecimento de dicotomias que distinguem a antropologia das outras discipli­</p><p>nas (do tipo: abordagem qualitativa x abordagem quantitativa; doença como rea­</p><p>lidade sócio-cultural x doença como fato biológico; relativismo x universalismo).</p><p>Ao examinar criticamente o tema, tomam duas direções básicas. Alguns buscam</p><p>desconstruir as dicotomias correntes (o que não significa que discordem delas)</p><p>rumo aos seus fundamentos metateóricos. Outros apresentam uma visão comple­</p><p>xa do campo a partir da discussão de trabalhos empíricos, etnográficos.</p><p>A falta de uma concordância sobre o modo ideal de construir as relações da</p><p>antropologia médica com outras disciplinas não significa, em si mesmo, que esta</p><p>ainda carece de cientificidade. A imagem de cientificidade de um determinado</p><p>campo do saber emerge progressivamente da demarcação frente e diálogo com</p><p>outros campos; daí a importância de se empreender uma reflexão continuada acerca</p><p>das relações que uma determinada disciplina mantém com outras áreas afins.</p><p>Como tem reconhecido a epistemologia contemporânea, uma ciência não se cons­</p><p>trói simplesmente através de uma progressão a priori, obedecendo a um certo</p><p>critério interno de orientação. Em qualquer ciência, principalmente aquelas rela­</p><p>cionadas com os fenômenos sócio-culturais, um processo de autocontrole atua</p><p>simultaneamente com processos de invenção de critérios, a partir dos quais no­</p><p>vos caminho do fazer científico estão continuamente sendo formulados. A cons­</p><p>trução de uma ciência é sempre dinâmica pois no seu processo histórico particu­</p><p>lar conta justamente com a possibilidade da diversificação, na co-adaptação pro­</p><p>gressiva de diferentes métodos e objetos de investigação.</p><p>O que os artigos parecem revelar de essencial é o constante processo de</p><p>delimitação de uma ciência que no Brasil, de uma maneira geral, está ainda em</p><p>um contexto de afirmação. A antropologia médica é uma disciplina relativamente</p><p>recente no nosso contexto acadêmico. Em linhas gerais seu desenvolvimento tem</p><p>sido marcado tanto pela discussão das fronteiras (e pontos de comunicação) fren­</p><p>te as disciplinas da área de saúde, quanto pelo estabelecimento de semelhanças e</p><p>dissemelhanças no diálogo entre as influências advindas de matrizes antropoló­</p><p>gicos delimitados pelos principais centros internacionais de ensino e pesquisa e</p><p>aquelas advindas da "tradição" teórico-metodológica dos estudos socio-culturais</p><p>pré-existentes no Brasil. Nesse processo, é que vem a se constituir o que, parafra­</p><p>seando Cardoso de Oliveira, poderíamos chamar de um estilo de antropologia</p><p>médica no Brasil.</p><p>A presente coletânea está dividida em</p><p>1972) antropológico em saúde. Porém assinala que é a partir dessa</p><p>década que se dá ênfase a uma produção específica.</p><p>Se essa produção peculiar partiu de trabalhos americanos e europeus, havia</p><p>uma considerável diferença entre as abordagens. Os americanos, desde o início,</p><p>trabalharam junto com os médicos, criando relações de interdisciplinaridade, se­</p><p>gundo alguns, ou de dependência disciplinar, segundo outros, tanto nas missões</p><p>que empreenderam na África, na América Latina e Ásia, como quando procura­</p><p>ram entender sua própria sociedade. Suas contribuições foram desenvolvidas vi­</p><p>sando à compreensão de sistemas específicos de saúde, das relações médico-</p><p>paciente, dos universos simbólicos que cercam os fenômenos da vida, da morte e</p><p>do adoecer, articulando-se sobretudo à clínica, à epidemiologia e ao planejamen­</p><p>to do setor, conforme revelam os trabalhos de Raymond Firth (1978) e Cammaroff</p><p>(1978), ambos citados por Nunes (1985).</p><p>Os antropólogos ingleses voltaram-se mais para os povos sob controle colo­</p><p>nial, elaborando abordagens holísticas, numa linha estrutural-funcionalista e</p><p>dedicada a compreender os universos cosmológicos dos grupos específicos. Os</p><p>temas sobre saúde e doença aparecem, então, vinculados à religião e à magia. É</p><p>como os tratam, por exemplo, Evans-Pritchard (1978) e Victor Turner (1967 e</p><p>1969). Uma avaliação feita pelo Social Anthropology Committee de Londres em</p><p>1968, deixa clara a circunscrição da antropologia britânica aos países africanos e</p><p>orientais e o direcionamento dos estudos para discussões de tabus e práticas ali­</p><p>mentares, práticas médicas tradicionais e cosmologias (Fortes, 1976).</p><p>Nunes (1985) comenta que a partir da década de 70, organismos internacio­</p><p>nais, como a OMS e a OPAS, investiram no fortalecimento das relações entre a</p><p>an t ropo log i a e a med ic ina , sob re tudo incen t ivando a e tnomed ic ina . O</p><p>estranhamento das culturas indígenas e subdesenvolvidas pelos sanitaristas de</p><p>formação campanhista, e as resistências das populações locais em adotarem nor­</p><p>mas de conduta não condizentes com sua cosmologia, exigiram investimentos</p><p>antropológicos no sentido de buscar pontos de consenso e de legitimação, e tam­</p><p>bém a utilização dos líderes comunitários e tribais como mediadores das relações</p><p>entre a medicina oficial e as sociedades alvo.</p><p>Por isso mesmo, das décadas de 50 a 70, independente das tradições especí­</p><p>ficas americanas ou inglesas, a chamada Antropologia Médica se desenvolveu</p><p>sob a égide de uma categoria cujo nome dispensa maiores comentários: ciências</p><p>da conduta, junto com a sociologia e a psicologia social, no campo da saúde</p><p>pública. Ou seja, as ciências da conduta eram elaboradas dentro da corrente</p><p>funcionalista da sociologia, voltadas para a adequação de normas, saberes e</p><p>linguagem médica aos diferentes contextos leigos, em particular ao dos povos</p><p>colonizados e subdesenvolvidos. Estrella (1985) reafirma esse investimento in­</p><p>ternacional na América Latina, na década de 70, mostrando o interesse conju­</p><p>gado de organismos internacionais e dos estados nacionais. O autor menciona</p><p>as várias abordagens então em curso, incluindo o treinamento de investigado­</p><p>res locais, passando por estudos sobre o folclore dos grupos-alvo até os traba­</p><p>lhos que se desenvolveram dentro dos marcos da antropologia clássica. Mostra</p><p>também as tentativas de avanço conceituai e de intervenções que buscaram</p><p>superar o ponto de vista legitimador-utilitário, em favor de tendências natura­</p><p>lista-humanista e revolucionária que marcaram os esforços dos antropólogos</p><p>latino-americanos.</p><p>Em seu cuidadoso trabalho de revisão, Canesqui (1994) lembra que, nas</p><p>décadas de 40 e 50, nos Estados Unidos, a antropologia foi incorporada nos pro­</p><p>gramas internacionais de saúde pública, todos eles dirigidos à América Latina,</p><p>África e Ásia, com forte conotação funcionalista e voltados para estudos de co­</p><p>munidade, tais como preconizados por Foster (1977) e Foster & Anderson (1978)</p><p>no Smithsonian Institute. Uma contribuição fundamental da antropologia ameri­</p><p>cana da década de 70 foi a categorização e a discussão conceituai dos termos:</p><p>disease (manifestação patológica em linguagem biomédica); illness (percepção</p><p>subjetiva expressa em linguagem de senso comum); sickness (expressão cultural</p><p>da doença). (Kleinman, 1986; Frankenberg, 1980; Young, 1982).</p><p>Mesmo com todas as críticas que possam ser feitas, o avanço da Antropolo­</p><p>gia Médica nos Estados Unidos foi monumental nesses quase 50 anos, influen­</p><p>ciando abordagens no mundo inteiro, criando uma rede de especialistas, de insti­</p><p>tuições acadêmicas e de produção cientifica. Sua representatividade se expressa</p><p>na Society of Medical Anthropology.</p><p>Um contraponto importante à hegemonia americana é dado pela antropolo­</p><p>gia francesa. Em primeiro lugar, do ponto de vista téorico-conceitual, a contri­</p><p>buição de Lévy-Strauss tanto na postura de relativização das culturas (1970),</p><p>quanto nas descobertas do pensamento lógico na cultura selvagem (1976) foi</p><p>fundamental como parâmetro de abordagem, inclusive frente às tentativas de</p><p>desqualificação de sistemas médicos tradicionais. Em segundo lugar, a antropo­</p><p>logia francesa problematizou o sentido do conceito de antropologia médica, mos­</p><p>trando sua concepção reduzida e sua submissão disciplinar e instrumental.</p><p>(Herzlich, 1984; Laplatine, 1986). Ao invés, passou a trabalhar com a denomina­</p><p>ção Antropologia da Saúde da Doença, retirando o tema do interior da área medi­</p><p>ca (embora contendo também esse contexto) elevando-o a uma perspectiva</p><p>metacultural e comparativa dos fenômenos da saúde, da doença e da cura.</p><p>(Boltanski, 1979; Herzlich, 1984; Laplatine, 1986).</p><p>Quando elaborou a mencionada revisão, Nunes (1985) não se deteve na si­</p><p>tuação da antropologia brasileira, mesmo porque, a articulação dessa disciplina</p><p>no campo da saúde era ainda muito incipiente. O autor menciona, na bibliografia,</p><p>apenas uma tese de mestrado na UNICAMP, a de Oliveira (1983) e notifica, o</p><p>que possivelmente seria um relatório de pesquisa de Loyola (1977). Esse silêncio</p><p>que está ligado, com certeza, à escassez de dados, vai ser rompido pelo trabalho</p><p>de Canesqui (1994) que muito acertadamente delimita a década de 80 para a</p><p>elaboração de sua revisão. É então que começam a florescer os trabalhos, sobre­</p><p>tudo a partir da segunda metade da década, permitindo observar as temáticas</p><p>recorrentes e as tendências reflexivas.</p><p>Com um sistema de Ciência e Tecnologia ainda muito jovem, o Brasil, como</p><p>seria de esperar, tem sido objeto de estudos de pesquisadores estrangeiros e rece­</p><p>be a influência do debate internacional. Essa exposição ao pensamento e às teo­</p><p>rias estrangeiras está se dando cada vez de forma mais amadurecida, mas merece</p><p>uma reflexão crítica. Nesse contexto, um tema que não me parece menor é a</p><p>própria categorização da área de antropologia no interior do campo da saúde:</p><p>antropologia médica ou antropologia da saúde?</p><p>Com um conjunto de profissionais formados em escolas francesas e anglo-</p><p>saxônicas ou em centros acadêmicos brasileiros marcados por influências ora de</p><p>uns ora de outros, existe ambigüidade, permissividade e aleatoriamente na utili­</p><p>zação dos termos em questão. Certamente isso revela confusões conceituais e</p><p>uma certa falta de clareza do próprio lugar ou papel que teria hoje, no país, a</p><p>antropologia para o campo da saúde. É bem verdade que tal condição de insegu¬</p><p>rança é alimentada por fatores externos e internos à área. Alguns exemplos aju­</p><p>dam a esclarecer a situação. Um deles é a repetida recusa da ANPOCS (Associa­</p><p>ção Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais) em abrir um</p><p>grupo de trabalho sobre Ciências Sociais ou Antropologia da Saúde, evidencian­</p><p>do, mais uma vez, a crônica dificuldade das Ciências Sociais Brasileiras de se</p><p>abrirem para áreas aplicadas. A alegação reiterada de não ampliar os grupos exis­</p><p>tentes é também o pretexto para dizer que os temas</p><p>da saúde cabem melhor na</p><p>ABRASCO (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Quando, atualmente se</p><p>conseguiu furar o cerco da ANPOCS, os termos de referência tiveram que se</p><p>restringir ao título "Pessoa, Corpo e Doença " que apenas parcialmente tem a ver</p><p>com o que estudam e praticam os antropólogos atuantes no campo da saúde.</p><p>Mais recentemente, a ABA (Associação Brasileira de Antropologia) abriu</p><p>um espaço para esta reflexão específica, augurando aos investigadores que traba­</p><p>lham com o objeto saúde, oportunidade de articulação, troca de experiências e</p><p>possibilidades de avanço no conhecimento. No entanto o grupo de trabalho tam­</p><p>bém gravita em torno do tema "Corpo e Medicina " ainda não abrangendo o con­</p><p>junto de objetos identificatórios da área. E no interior das especializações da</p><p>ABRASCO, a antropologia apenas detém hoje um dos assentos na Comissão de</p><p>Ciências Sociais, faltando-lhe, portanto, um espaço próprio de reflexão, cresci­</p><p>mento e expressão própria.</p><p>Tenho como hipótese que essa antropologia brasileira "médica ou da saúde "</p><p>tenderá a um processo de maturação, impulsionado por vários fatores convergen­</p><p>tes:</p><p>a) a consolidação de núcleos e linhas de investigação em vários centros e</p><p>institutos, de antropologia da saúde/medicina. (Passarei a utilizar a forma ambí­</p><p>gua de se nomear a sub-área até que tenhamos definido conceitualmente sua gra­</p><p>mática);</p><p>b) a organização de eventos tais como o I Encontro Nacional de Antropolo­</p><p>gia Médica (Salvador, 1993), onde os professores/pesquisadores terão que se auto¬</p><p>referenciar;</p><p>c) a realização de publicações individuais ou coletivas que impulsionam a</p><p>reflexão crítica;</p><p>d) a demanda da própria área de saúde, explicitando suas necessidades para</p><p>o recorte disciplinar e suas interações inter ou transdisciplinar.</p><p>Como é de conhecimento geral, a identidade se faz, de um lado, a partir dos</p><p>traços dos progenitores (e no nosso caso, os pais são de origem anglo-saxônica</p><p>ou francesa). De outro, porém, ela se constrói no confronto com os diferentes e as</p><p>diferenças externas, ou seja, na própria historicidade. Nessa dialética, a antropo­</p><p>logia, pelo seu próprio dever de ofício, e por trabalhar com fenômenos comple­</p><p>xos e relacionais, sejam eles numa tribo ou numa mega-cidade, necessita tomar,</p><p>como objeto, o próprio conceito de saúde como referência identificatória. Se a</p><p>intenção é focalizá-lo no campo da intervenção técnica do sistema médico, terá</p><p>um objeto mais restrito, mais delimitado, mais instrumental e passível de melhor</p><p>controle e demarcação, dentro dos quadros da chamada "ciência normal".</p><p>Se entender a saúde como objeto de interesse da sociedade, ou seja, como o</p><p>conjunto de ações e movimentos que ela promove para se manter saudável, vai</p><p>retirá-la, conceitualmente, da tutela médica, para ampliar suas fronteiras. E aí se</p><p>incluem tanto a medicina e a saúde pública assim como todos os temas de rele­</p><p>vância que recobrem o universo de uma sociedade saudável. Ou seja, serão seu</p><p>objeto de reflexão teórico-prática as condições de vida que interferem nas condi­</p><p>ções de saúde; as políticas públicas e sociais do setor e intersetoriais; os vários</p><p>sistemas terapêuticos, incluindo-se a atenção em todos os níveis; e por fim, os</p><p>valores e crenças que dão suporte aos limites da tolerância e vulnerabilidade da</p><p>sociedade frente ao que afeta sua saúde individual e coletivamente. Nesse caso, o</p><p>papel da Antropologia, parafraseando White (1991) seria restituir aos fenômenos</p><p>biológicos, sua verdadeira natureza social, destruindo a indevida "naturalização"</p><p>empreendida pela ciência, sobretudo pela biologia e pela medicina.</p><p>DILEMAS DO CRESCIMENTO</p><p>Herzlich (1984), White (1991) e Carrara (1994) nos convidam a um olhar</p><p>construcionista para entender a articulação entre antropologia e saúde/medicina.</p><p>Nada melhor que isso para uma sub-área que tenta se definir levando em conta</p><p>fatores internos e externos que influenciam seu crescimento.</p><p>Em primeiro lugar, é preciso prestar atenção aos lugares diferenciados de</p><p>onde falam os antropólogos voltados para a saúde. Porque existem várias situa­</p><p>ções e posições institucionais em jogo nessa interrelação. Ou seja, ou falam de</p><p>departamentos de antropologia, buscando diálogo com a área de saúde "stricto</p><p>sensu" ou de espaços híbridos (institutos, escolas, departamentos de Medicina</p><p>Social ou Preventiva, Saúde Pública ou Coletiva) onde os antropólogos estabele­</p><p>cem um diálogo nem sempre fácil com profissionais das designadas "ciências</p><p>duras", "ora nossos aliados, ora concorrentes, ora nossos objetos, ora nossos</p><p>interlocutores" (Carrara, 1994, 37). Independente da vinculação institucional, há</p><p>profissionais que trabalham e investigam junto com médicos e epidemiologistas,</p><p>assim como há outros que se colocam de forma desvinculada dos serviços e ativi­</p><p>dades de saúde "stricto sensu" e voltados para análises tipicamente disciplinares.</p><p>Herzlich (1984) analisando as relações iniciais da sociologia e da antropolo­</p><p>gia americana com a medicina, destacou que eles (os profissionais dessas áreas)</p><p>"assumiam e aceitavam" plenamente as concepções médicas dos fatos patológi­</p><p>cos". O passo desconstrucionista dessa relação, portanto teria que ser a desmisti¬</p><p>ficação do caráter transcendental do ato médico, para mostrar como ele se origi¬</p><p>na, se produz e se reproduz no contexto social. Por outro lado o que necessitaria</p><p>ser construido com todos os instrumentos teóricos e práticos de que a antropolo­</p><p>gia e as disciplinas do setor saúde dispõem, são as bases dessa relação de coope­</p><p>ração. Pois o que me parece é que, ora de lado, ora de outro, dependendo do tema</p><p>em questão, uma delas será a dominante.</p><p>Analisando essa atitude (construcionista/desconstrucionista) necessária à</p><p>relação e à tensão entre Medicina/Saúde/Antropologia e ao lugar que deveria</p><p>ocupar na díade disciplinar, tanto Carrara (1994) quanto Herzlich chamam aten­</p><p>ção, para os riscos da radicalização, sobretudo quando se propõem fórmulas que</p><p>não nasçam da realidade</p><p>"O próprio construcionismo começa a gerar apreensões e angústias" diz</p><p>Carrara (1994). E Herzlich, atinava em seu crítico trabalho sobre a doença en­</p><p>quanto significante social (1984), para o erro de "limitar-se a tratar a medicina</p><p>sem referência à positividade de seu saber ou à eficácia de sua prática como</p><p>simples resposta simbólica ou como pura ideologia" (Herzlich, 1984:12-13).</p><p>Carrara (1994) cita também uma crítica de Rosenberg (1988) ao relativismo</p><p>e ao construcionismo radical, mostrando que, como por exemplo a forma como</p><p>frequentemente são tratados temas relativos a AIDS. Não se podem aprofundar</p><p>estigmatizações que medicalizam o homossexualismo, da mesma forma como</p><p>não se podem desconhecer as descobertas dos imunologistas e dos virologistas</p><p>sobre AIDS, uma doença com um grau de quase 100% de fatalidade. Mais do que</p><p>nunca, o que a AIDS, em particular, vem mostrar é a necessidade de interação,</p><p>sem pretensões de hegemonia entre as ciências biomédicas e antropológicas. Se­</p><p>guindo-se uma lógica habermasiana (Habermas, 1987) a construção da compre­</p><p>ensão dessa epidemia do final do século trouxe também a necessidade de articu­</p><p>lar o conhecimento científico às exigências do mundo da vida, ponto sobre o qual</p><p>a antropologia, tem muito a dizer, pois trabalha prioritariamente com o entendi­</p><p>mento da lógica dos atores sociais.</p><p>Sobre o espaço dessa relação entre ambas as ciências, creio que é preciso</p><p>elucidar os vários níveis de interação e os diferentes graus de aproximação. As­</p><p>sinalarei pelo menos três Em primeiro lugar estão os estudos básicos, tipicamente</p><p>antropológicos, onde a questão da saúde e da doença fazem parte de um universo</p><p>"totalizante" e complexo de relações sociais, políticas, econômicas, domésticas e</p><p>cosmológicas, e onde a compreensão da saúde e doença e dos sistemas médicos</p><p>compõem o quadro geral e da ordem social. Trata-se de trabalhos profundos,</p><p>longos e demorados,</p><p>quase sempre realizados em departamentos de antropolo­</p><p>gia, onde a geração do conhecimento, independentemente de sua repercussão,</p><p>entra no âmbito do desenvolvimento de teorias e conhecimentos imprescindíveis</p><p>para o avanço da disciplina. Exemplo desse tipo de contribuição são os estudos</p><p>de Duarte (1986; 1994; 1996; 1993). Tais estudos são de fundamental importân­</p><p>cia também para o campo da saúde "stricto sensu" porque é nessa fonte que po¬</p><p>dem e devem se saciar, os que pertencem àquele universo "híbrido" de que fala</p><p>Latour (1993). Em segundo lugar, situam-se trabalhos que intitularei aqui "estra­</p><p>tégicos" utilizando um termo de Bulmer (1987). São, em geral, estudos empreen­</p><p>didos nos cursos de pós-graduação e nos núcleos de pesquisa dos departamentos,</p><p>escolas e institutos de Medicina Preventiva, Medicina Social e Saúde Pública/</p><p>Coletiva. Essas investigações, habitualmente, tomam um tema especifico, articu­</p><p>lam-no tanto no âmbito da antropologia como na biomedicina, buscando dar sub­</p><p>sídios para a implementação de políticas públicas. Esse objeto "híbrido" paro­</p><p>diando Latour (1993) bebe na fonte da antropologia social, da epidemiologia ou</p><p>de outras disciplinas do campo da saúde e em geral termina com propostas de</p><p>ação e atuação. As elaborações que se incluem nesse segundo grupo também</p><p>trazem vários desafios teóricos-práticos, porque são de total relevância para o</p><p>campo da saúde pública. É nesses trabalhos que se exercita e se reafirma a possi­</p><p>bilidade interdisciplinar e nisso reside uma de suas maiores importâncias, como o</p><p>mostram autores tais quais Minayo (1993) e Minayo e Cruz Neto (1997). Quando</p><p>realizada com competência não correm o risco de se tornarem reducionistas e</p><p>instrumentais, gerando conhecimentos dos quais se beneficiam tanto a antropo­</p><p>logia quanto a biomedicina, embora esse conhecimento será sempre diferenciado</p><p>em relação ao disciplinar. A abordagem estratégica indui uma condição colocada</p><p>por Carrara (1994) apud Mauss (1974), que é a articulação entre natureza e cultu­</p><p>ra e entre ciência e técnica, vistas como um bloco em que o ser o homem cria e</p><p>cria-se a si próprio; cria seus meios de viver e seu pensamento inscrito nessas</p><p>coisas. O locus preferencial desses trabalhos são os cursos de pós-graduação e os</p><p>centros de investigação em saúde pública/coletiva e de medicina preventiva. Al­</p><p>guns tratam da compreensão de condições de saúde, de atividades dos serviços e</p><p>outros são destinados à avaliação de relações institucionais e de programas. As</p><p>abordagens interdisciplinares supõem que os bons trabalhos de antropologia</p><p>médica ou da saúde não podem dispensar a compreensão intrínseca dos objetos</p><p>com os quais trabalham para se limitarem à análise discursiva. Pelo contrário,</p><p>abrangem o universo de coisas e ao mesmo tempo um mundo de idéias sobre</p><p>elas, ou seja, num "híbrido" real onde, como diz Latour (1993), os cientistas</p><p>vivem. Neste sentido, a construção dos domínios chamados a cooperar acaba por</p><p>ir definindo uma disciplina interdisciplinar. Em outras palavras, a interdisciplina¬</p><p>ridade só obtém êxito como forma de conhecimento e prática científica, na medi­</p><p>da em que a disciplina utilizadora (e igualmente, o sujeito que a pratica) se apro­</p><p>pria da disciplina utilizada, passando rigorosamente por dentro de sua problemá­</p><p>tica. "Isso implica que a colaboração entre duas disciplinas exige a dupla compe­</p><p>tência e a interdisciplinaridade exige igualmente, a competência nas disciplinas</p><p>que coloca em colaboração" (Sinaceur, 1977:621). Em relação aos problemas des­</p><p>sa forma de abordagem estratégica e interdisciplinar, tratarei mais à frente, quando</p><p>falar do universo de atores que circulam em volta dessas práticas teóricas.</p><p>Uma terceira categoria de trabalhos que hoje se apresentam no universo da</p><p>antropologia médica e da saúde se vinculam ao que genericamente se chama</p><p>aqui "pesquisas operacionais". Tendo em mente as necessidades de interven­</p><p>ção para promoção, prevenção e tratamento da saúde, existe uma demanda cla­</p><p>ra do setor para as abordagens antropológicas. Muito freqüentemente, as insti­</p><p>tuições de ação política e assistencial necessitam compreender os significados</p><p>(ao lado dos significantes) as intencionalidades e o universo simbólico dos di­</p><p>ferentes sujeitos com quem devem interagir, de forma a tornar sua atuação mais</p><p>adequada, eficaz e respeitadora os universos culturais de segmentos e grupos</p><p>específicos.</p><p>Se olharmos com rigor metodológico, poderíamos dizer que, essas investi­</p><p>gações se apropriam de forma bastante reduzida e fragmentada dos estudos mais</p><p>to ta l izantes da an t ropologia e dela retiram as técnicas de abordagem e,</p><p>simplificadamente, os modelos analíticos. Um exemplo desse tipo de utilização é</p><p>o já popular RAP (Rapid Assessment Procedures) elaborado para a avaliação de</p><p>programas de saúde por Schrimshaw e por Hurtado (1987) que, de certa forma,</p><p>vu lgar iza , d i r ec iona e es t ru tura o mé todo an t ropológ ico para obje t ivos</p><p>operacionais.</p><p>Hoje na área da saúde são inúmeros, incontáveis e proliferantes os trabalhos</p><p>de cunho operacional e estratégico que empregam a "metodologia qualitativa"</p><p>Se é verdade que as metodologias qualitativas são domínio comum da sociologia</p><p>e da antropologia, quando utilizadas na área da saúde, costumam incluir todo o</p><p>instrumental antropológico do trabalho de campo. Considero que esta é uma das</p><p>formas que a área da saúde descobriu de se aproximar das abordagens compreen­</p><p>sivas, delas se apropriando seja para humanizar a medicina, seja para encontrar</p><p>respostas ou fazer ainda mais perguntas sobre as crises e dificuldades que o setor</p><p>atravessa.</p><p>Nos meus 12 anos de atividade docente e de pesquisa numa Escola de Saúde</p><p>Pública (e talvez porque aí o universo dos atores - incluindo os médicos - seja</p><p>sensivelmente diferenciado e diferencialmente sensível) cada vez me surpreende</p><p>mais o número de profissionais que investem na compreensão cultural da saúde/</p><p>doença e de todas as questões que recobrem esse tema mobilizador da economia</p><p>e da vida social. E muitos o conseguem com grande êxito! Do ponto de vista da</p><p>efetividade seria um bom tema de pesquisa, o impacto que esta aproximação</p><p>amorosa tem causado no âmbito das práticas em saúde. Creio que mereceria um</p><p>estudo de longo alcance e dificilmente conseguiria reunir todas as influências</p><p>diretas e indiretas de um campo sobre o outro.</p><p>Embora os mais ortodoxos poderiam lastimar a vulgarização ou mesmo a</p><p>banalização provocada pelas dificuldades da interdisciplinaridade que acaba sendo</p><p>sempre uma articulação de fragmentos, tenho uma hipótese de que os ganhos são</p><p>maiores que as perdas, embora creia que há perdas e ganhos para ambos os lados.</p><p>Do lado das "perdas" há algumas questões mapeadas, por vários antropólo­</p><p>gos "básicos". Dentre outras, está o risco que a apropriação de fragmentos disci­</p><p>plinares e metodológicos contém, quando não são analisados os contextos cultu­</p><p>rais, levando a uma visão parcial dos objetos e das relações. Também se ouve</p><p>falar muito na submissão colonialista da antropologia em relação à medicina,</p><p>como já foi mencionado neste trabalho, contemplando várias razões, dentre elas,</p><p>a hegemonia tecnológica do setor saúde. Gostaria de assinalar uma a que deno­</p><p>minarei aqui "a proliferação de discursos transparentes", parafraseando a expres­</p><p>são de Bourdieu "a ilusão da transparência" (1972). Ela se traduz hoje nas análi­</p><p>ses do material qualitativo nos muitos trabalhos realizados por estudantes e pro­</p><p>fissionais de saúde, quase sempre de forma indutiva (semi-estruturada) ou diretiva,</p><p>buscando compreender os significados, tanto de ações como de pensamentos,</p><p>sentimentos e resistências de grupos populacionais frente a doenças específicas,</p><p>tratamentos, políticas e relações médico-pacientes. Vários estudos demonstram</p><p>grande sensibilidade e vão muito além do que seria justo esperar de profissionais</p><p>de saúde se apropriando do</p><p>instrumental de outra disciplina. Porém, a maioria</p><p>deles padece da ilusão da transparência, na medida em que se contentam em</p><p>classificar discursos, descolados das práticas e contextos que lhes deram origem;</p><p>e comentar depoimentos dos informantes, tratando-os como a própria verdade.</p><p>Muitos desses estudos nada mais são do que pesquisas de opinião (realizados</p><p>sem as temáticas apropriadas para essa modalidade, portanto, mal feitas) fazendo</p><p>coro com aquilo que Stoufler (1931:154-156) há 68 anos atrás, já criticava nos</p><p>estudos antropológicos, do seu tempo, para enaltecer a objetividade das pesqui­</p><p>sas quantitativas.</p><p>Numa tese denominada "An Experimental Comparison of Statistical and a</p><p>Case History Technique of Attitude Research" defendida na Universidade de</p><p>Chicago, Stoufler enalteceu a superioridade da estatística, contra as análises qua­</p><p>litativas, consideradas quando muito, es tudos heurís t icos , pré-científ icos,</p><p>subjetivistas e até reportagens mal feitas.</p><p>As perdas do ponto de vista do campo "stricto sensu" da saúde, consiste, a</p><p>meu ver, na tentação de transformar a medicina num discurso, menosprezando a</p><p>sua base técnica como de "natureza geral e humana" (Mauss, 1979), como arte</p><p>prática, que faz o ser humano recriar a natureza. Essa concepção da saúde e da</p><p>doença como fatos sociais, desconhecendo a base biológica dos fenômenos e a</p><p>mediação psicológica é o avesso do que geralmente a medicina faz, sendo por­</p><p>tanto também reducionista e pobre, e responsável pelo falso dilema que, por ve­</p><p>zes, é criado entre a antropologia e o campo da saúde, como pode ser exemplificado</p><p>nos vários debates, hoje muito presentes, em torno da AIDS. Participamos de um</p><p>seminário em que um médico imunologista se retirou indignado porque antropó­</p><p>logos e cientistas sociais, em geral, diziam de forma absolutista que AIDS era</p><p>questão de preconceito, uma construção social, brandindo contra os que defen¬</p><p>diam o caráter biológico da síndrome, também de forma radical, Ou seja, ambos</p><p>os lados tinham razão suficiente para estabelecerem um diálogo e nenhuma para</p><p>continuarem o monólogo ensurdecido.</p><p>Outra crítica que geralmente os profissionais de saúde fazem aos antropólogos</p><p>é quanto a seus ritmos e tempos muito lentos, para as necessidades de um setor que</p><p>necessita dar respostas urgentes e rápidas. Por fim, o fato de utilizarem uma lingua­</p><p>gem que por vezes é demasiado longínqua das tecnologias de intervenção.</p><p>Em síntese, eu diria que essa classificação que engloba os estudos básicos,</p><p>os estudos estratégicos e os estudos operacionais aqui sugerida para visualizarmos</p><p>as r e l ações entre an t ropó logos e es tud iosos da saúde , pode padecer de</p><p>reducionismo. Os três cenários nos quais estariam atuando os diferentes atores</p><p>sob a ó t i c a d a A n t r o p o l o g i a M é d i c a / d a S a ú d e é f l ex íve l , in te ra t ivo e</p><p>interfertilizante. Para compreendê-los, porém, é preciso distinguir o universo dos</p><p>"iniciados" (o primeiro) e os dois últimos onde os próprios profissionais de saúde</p><p>e investigadores de outros campos disciplinares transitam em busca de interdisci¬</p><p>plinaridade e aplicação, criando ao mesmo tempo, uma produção rica e promis­</p><p>sora e uma necessidade de problematização dessas relações.</p><p>INSEGURANÇAS E DISPERSÕES DE UM</p><p>CAMPO " A D O L E S C E N T E "</p><p>Referindo-se à antropologia médica da saúde latino-americana, Estrella (1985)</p><p>comenta que o campo de estudos mais importante na região tem sido o da</p><p>etnomedicina. Certamente o autor tomou, como base de análise, a produção dos</p><p>países de língua espanhola, talvez perdendo, na sua referência a pujança de temas</p><p>e linhas teóricas desenvolvidas no Brasil, desde o final da década de 60, numa</p><p>crescente ampliação de autores e objetivos específicos.</p><p>Em sua revisão Canesqui (1994) elenca um conjunto de temáticas, cuja ela­</p><p>boração vai de 1968 até os dias de hoje, tecendo comentários sobre questões</p><p>teóricas e metodológicas referentes aos diferentes estudos. Limitar-me-ei a nomeá-</p><p>las, classificando as linhas de trabalho, incluindo também o mapeamento realiza­</p><p>do por Carrara (1994) para o I Encontro Nacional de Antropologia Médica, rea­</p><p>lizado em Salvador, e alguns temas que pude apreender nas minhas investigações</p><p>e que não estavam incluídos pelos autores. Resumo-os na seguinte lista:</p><p>1) Alimentação e Hábitos Alimentares;</p><p>2) Sistemas terapêuticos indígenas;</p><p>3) Sistemas terapêuticos populares: etiologia, tratamento e cura;</p><p>4) Sistemas médicos comparados;</p><p>5) Práticas e relações médico/paciente; jurídico-legais;</p><p>6) Práticas terapêuticas corporais;</p><p>7) Relações entre religião e cura;</p><p>8) Concepções de doenças específicas: AIDS, Hanseníase, Parasitárias,</p><p>Endêmicas;</p><p>9) Sexualidade, Reprodução e Gênero;</p><p>10) Etnopsiquiatria;</p><p>11) Instituições de saúde e instituições psiquiátricas;</p><p>12) Desenvolvimento de abordagens interdisciplinares e triangulação de</p><p>métodos;</p><p>13) Avaliação de Políticas e Serviços de Saúde;</p><p>14) Cotidiano de doentes vivendo com doenças especificas.</p><p>Às observações de ordem conceituai e empírica tecidas por Canesqui (1994)</p><p>e Carrara (1994), acrescentarei dois comentários analíticos, avançando a partir</p><p>do ponto onde esses pesquisadores se detiveram.</p><p>1) O primeiro, desvendando algumas incongruências, no interior da pujança</p><p>revelada pela área em questão, Ou seja, esse crescimento que foi se tornando</p><p>notório nos últimos 20 anos nos autorizaria a pensar numa crescente autonomia</p><p>de um campo de conhec imen to " n a t i v o " capaz de proje tar luz sobre o</p><p>universalismo e as peculiaridades do modo como o pais pensa, sente e atua frente</p><p>às questões da vida e da morte, da saúde e da doença.</p><p>No entanto, isso não aparece nas fontes bibliográficas. A construção de co­</p><p>nhecimentos que já se avolumam expressa uma escassa leitura de nossos pares</p><p>nacionais (estejam eles na universidade ou nos institutos de pesquisa). Mesmo</p><p>quando investigando temas semelhantes, a bibliografia citada é estrangeira, de­</p><p>notando, a meu ver, uma certa desconfiança dessa produção nacional. Ou seja, a</p><p>relação é centrifugada pelas referências internacionais, tornando a comunicação</p><p>entre os investigadores brasileiros um monólogo acadêmico surdo, em relação a</p><p>seus colegas brasileiros.</p><p>Para tornar mais patente essa constatação, darei um exemplo, utilizando o</p><p>recente livro Saúde-Doença: um olhar antropológico (Alves e Minayo, 1994)</p><p>que se inicia com a citada revisão bibliográfica, onde Canesqui (1994) referencia</p><p>50 autores brasileiros. Pois bem, os 12 artigos seguintes que compõem o livro, no</p><p>seu conjunto, fazem apenas 18 referências a autores nacionais, num total de 130</p><p>citações, realizadas no decorrer do livro. Ou seja, 86% são menções a obras de</p><p>estrangeiros e 14% às de brasileiros. Há textos (e vários) em que o único autor</p><p>nacional citado é o próprio assinante do trabalho. Como curiosidade a ser notada,</p><p>há um artigo cujo autor se debruça sobre o programa do I Encontro Nacional de</p><p>Antropologia Médica enquanto objeto de análise, apresentando importantes e</p><p>brilhantes considerações sobre os temas lá tratados, sem citar um pesquisador do</p><p>pais, nem os presentes ao seminário. Vale-se, ao contrário, de autores estrangei­</p><p>ros (vários clássicos) para elaborar sua abordagem critica, não fugindo à regra</p><p>acima citada. Tentei analisar duas outras coletâneas ainda em prelo.</p><p>Numa delas quase toda composta por trabalhos de pós-graduandos em An­</p><p>tropologia, o percentual de citações de obras nacionais é de 58%. Na outra, que</p><p>reúne os autores de maior renome no tema do país, a proporção é de 39% em</p><p>relação às 6 1 % de referência internacional. Procurei entender o aumento de cita­</p><p>ções de investigadores brasileiros por estudantes de pós-graduação como um si­</p><p>nal de que a segunda ou terceira geração de antropólogos da saúde já terão uma</p><p>visão mais nítida do pensamento nacional.</p><p>Buscando interpretar o ponto em discussão, tendo a pensar</p><p>que essa dificul­</p><p>dade de interação interpares pode ser indicio da falta de obras e autores vigorosos</p><p>e de referência, capazes de nortear leituras, análise e propostas. Mas, não poderá</p><p>significar também uma certa dependência "adolescente" ou talvez colonialista</p><p>em relação à antropologia gerada nos centros "desenvolvidos"? Talvez o local de</p><p>formação dos nossos PhDs seria um fator importante para explicar essa ligação</p><p>umbilical, que julguei necessário explicitar para se processar uma proposta de</p><p>superação. Ou seja, numa disciplina em que o país é reconhecido pela sua com­</p><p>petência, é necessário rever o crédito que seus intelectuais lhe dão.</p><p>Em outras áreas da saúde como as de epidemiologia e de políticas públicas</p><p>(é uma hipótese) talvez essa síndrome de dependência seja menor. No primeiro</p><p>caso, graças ao vigor e à maturidade da disciplina. No segundo, porque o próprio</p><p>objeto exige referência a fontes nacionais. No entanto, também em relação a elas</p><p>seria importante proceder a uma análise crítica sobre esse assunto em particular.</p><p>Quero deixar claro que não nutro nenhuma visão xenófoba e que, antes de tudo</p><p>entendo o campo científico, embora conflitivo, também, marcado pela universa­</p><p>lidade. Quis apenas fazer um exercício que nos alertasse sobre a forma como</p><p>estamos expressando ou não nossas potencialidades.</p><p>2) Uma segunda questão que julgo pertinente levantar, diz respeito á aleato¬</p><p>riedade dos temas investigados, chamando atenção em pelo menos dois sentidos:</p><p>o da forma com que são gerados e o de sua adequação em relação às necessida­</p><p>des de saúde da população brasileira. Certamente esse item da discussão mere­</p><p>cerá reparo e crítica de muitos estudiosos que consideram a liberdade de cáte­</p><p>dra e de investigação, causa pétrea e condição "sine qua non" do progresso da</p><p>ciência.</p><p>Acreditar nessa lei seria ir contra todas as teorias sociológicas críticas men­</p><p>cionadas na introdução deste trabalho, desde Kuhn (1970); Bourdieu (1975);</p><p>Latour (1978) e Knorr-Cetina (1981). Defendo que a liberdade de cátedra possa</p><p>ser c o n f r o n t a d a com a lguns p r i n c í p i o s den t r e os q u a i s , a neces sá r i a</p><p>responsabilização "accountability" dos investigadores numa área tão sensível,</p><p>tão problemática e tão crucial para a sociedade, como a saúde. Teoricamente</p><p>parece verdade que, se o indivíduo escolhe livremente seu objeto, seus métodos e</p><p>seus caminhos, produz melhor. Porém, na prática está comprovado que o "campo</p><p>científico" está carregado de interesses (sobretudo aos de financiamento e de</p><p>prestígio) na escolha dos investimentos temáticos. Portanto, além do interesse</p><p>individual e dos estímulos econômicos é importante buscar uma certa organiza­</p><p>ção temática que exija atenção e prioridade acadêmica. Não estou, necessaria­</p><p>mente defendendo uma ciência engajada, e sim uma sintonia entre a antropologia</p><p>e as questões mais relevantes para a população, o sistema e a política sanitária.</p><p>Sendo assim, resumo, dizendo que é preciso distinguir e diferenciar os di­</p><p>versos lugares e papéis da antropologia no campo da saúde, valorizando-os e</p><p>mantendo sobre eles uma crítica construtiva. Do ponto de vista da antropologia</p><p>enquanto ciência básica, a escolha dos objetos é normatizada, preferencialmente,</p><p>pelos cânones dessa ciência e pelas escolhas acadêmicas. Não diria o mesmo</p><p>para as atividades que se exercem no campo específico do setor saúde. Aí há que</p><p>se preservar duas tensões salutares. Ou seja a que se estabelece entre a pesquisa</p><p>teórica-básica sem compromisso imediato com a realidade e a pesquisa estratégi­</p><p>ca e operacional voltada para formulação, acompanhamento e avaliação de polí­</p><p>ticas e solução de problemas.</p><p>A segunda tensão seria entre a disciplinaridade que leva a aprofundar o lu­</p><p>gar, o papel e a contribuição da antropologia na sua incursão no setor saúde, e a</p><p>interdisciplinaridade que significa sua interface com as outras disciplinas, como</p><p>a epidemiologia, a engenharia sanitária, o planejamento e outras. São tensões a</p><p>que a antropologia não pode e não deve fugir sob risco de se isolar num nicho de</p><p>prepotência sempre olhando o "outro" como objeto e diferente, num caso; ou no</p><p>limite contrário, tornando-se apenas uma "ferramenta instrumental" para facilitar</p><p>culturalmente a intervenção da medicina e da saúde pública. Esse estar entre</p><p>nossos "ora concorrentes, ora aliados, ora objetos, ora interlocutores " (Carrara,</p><p>1994, 37) se não facilita nada o diálogo, evidência possibilidades de exercício</p><p>cooperativo, interdisciplinar, vôos transdisciplinares, e permite a interfertilização</p><p>e a criação, no campo da cultura e do pensamento, de objetos híbridos bem típi­</p><p>cos do mundo de coisas e de idéias no qual os cientistas vivem. Além dessa</p><p>contribuição epistemológica que também deve ser contada no investimento his­</p><p>tórico da antropologia no setor saúde, é preciso ressaltar sua colaboração para</p><p>introduzir a lógica das populações como elemento fundamental no planejamento,</p><p>na atenção médica e nos programas de promoção e prevenção.</p><p>CONCLUSÕES</p><p>Mais que conclusões, resumirei as reflexões aqui expostas em alguns itens:</p><p>1) Em primeiro lugar, é relevante assinalar o crescente desenvolvimento e as</p><p>tendências de aprofundamento da antropologia médica/de saúde no Brasil;</p><p>2) Da mesma forma, a reflexão aponta para um campo ainda "adolescente",</p><p>em fase de afirmação de identidade, debatendo-se entre a dependência do desen­</p><p>volvimento teórico-conceitual e metodológico estrangeiro e o já razoável acúmulo</p><p>de conhecimentos gerados no país. De qualquer forma pesa ainda muito a situa­</p><p>ção de dependência;</p><p>3) Existe uma dispersão temática, compreensível e compatível com o estado</p><p>da arte, ao sabor dos financiamentos e das escolhas individuais. Essa situação</p><p>exige do conjunto de atores, uma ação mais sistemática frente ao quadro de ne­</p><p>cessidades de saúde do país, para repensar as contribuições que a antropologia</p><p>pode dar para compreendê-las, de um lado, e de outro, para estar presente nas</p><p>atividades voltadas a solucionar problemas;</p><p>4) É fundamental cultivar, de forma refletida e orientada, a partir de análises</p><p>coletivas, uma salutar tensão entre a investigação teórica, a estratégica e o</p><p>operacional; e entre a disciplinaridade capaz de fortalecer essa área específica e o</p><p>diálogo interdisciplinar com os outros saberes que se colocam na parceria exercida</p><p>no complexo campo da saúde;</p><p>5) É crucial investir cada vez mais e melhor no terreno profícuo da formação</p><p>dos profissionais de saúde para a utilização da abordagem antropológica, sobre­</p><p>tudo no manejo das metodologias de análise de contextos, linguagens e concei­</p><p>tos;</p><p>6) Por fim, mas não menos importante, a sub-área terá que investir na sua</p><p>nomeação. Independentemente do tributo merecido a tradições americana, fran­</p><p>cesa ou inglesa, com quem necessita manter profunda interação, parece-me que a</p><p>produção brasileira estaria nos apontando, na prática, para a formação de um</p><p>campo de Antropologia da Saúde. Este é meu anseio e minha preferência em</p><p>relação ao debate inacabado, sobre a construção da identidade.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ALVES, P. C. e M. C. S. MIN AYO. (1994) Saúde e doença: Um olhar antropológico. Rio</p><p>de Janeiro: FIOCRUZ.</p><p>BOURDIEU, P. (1972). Ésqidsse d'une théorie de la pratique. Paris: Librairie Droz.</p><p>BOURDIEU, P. (1975). The specificity of the scientific field and the social conditions of</p><p>the progress of reason. Social Science Information, 14, n° 6, pp.304-317.</p><p>BOLTANSKI, C. (1979). As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Editora Graal.</p><p>BULMER, M. (1987). Research methods in social policy. Londres: Oxford University</p><p>Press.</p><p>CAMMAROFF, J. (1978). 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Tal empresa, contudo, não é simples, exigindo des­</p><p>de a evidente disposição inicial dos pesquisadores até uma readequação de voca­</p><p>bulários específicos e uma combinação de técnicas e métodos de investigação,</p><p>que podem mesmo gerar transformações importantes no âmbito das disciplinas</p><p>envolvidas. Transformações que Japiassu (1976), em seu estudo filosófico sobre</p><p>a interdisciplinaridade, chama de "comunicações ", e que ocorrem nos corpos</p><p>sociais de tais disciplinas, em suas estruturas.</p><p>Em outras palavras, interdisciplinaridade pode ser definida de distintos mo­</p><p>dos, com inevitáveis pontos de contato: a) utilização de enfoques variados para</p><p>abordar o mesmo objeto; b) sistema organizado para transferência de métodos</p><p>(quantitativosqualitativos); c) resposta complexa/compósita a interrogações</p><p>sobre o real-concreto; d) reunião progressiva e integrada de sistemas conceituais;</p><p>e) elaboração de um corpo conceituai unificado resultante da fusão das discipli­</p><p>nas (tal in tegração q u a n d o to t a l i zada levar ia à i n t rodução da idé ia de</p><p>transdisciplinaridade) (Faure, 1992).</p><p>No entender de Japiassu (1976: 82), a interdisciplinaridade se apresenta como</p><p>um movimento composto. Primeiro aparece como uma prática individual, "uma ati­</p><p>tude de espírito, feita de curiosidade, de abertura, de sentido da descoberta, de dese­</p><p>jo de enriquecer-se com novos enfoques, de gosto pelas combinações de perspecti­</p><p>vas e de convicção levando ao desejo de superar caminhos já batidos ", e depois,</p><p>num segundo momento, surge como uma prática coletiva pautada pela abertura ao</p><p>diálogo no trabalho em equipe, sendo dependente da capacidade técnica dos pesqui­</p><p>sadores envolvidos em lidar com as questões inerentes à interdisciplinaridade.</p><p>Aqui, neste texto, diante dos problemas ensejados pela interdisciplinarida¬</p><p>de, nossa abordagem se pretende indisciplinar1 (porém, de acordo com Soares</p><p>[1994], com todo o rigor da indisciplina...), pois os tempos que vivemos são de</p><p>perplexidade no campo das demarcações disciplinares e das correspondentes es­</p><p>truturas normativo-paradigmáticas que referenciam nossas proposições de co­</p><p>nhecimento.</p><p>Longe de ser, tão-somente, um jogo de palavras, esta idéia serve, por um</p><p>lado, para contornar alguns problemas, como por exemplo:</p><p>• obstáculos institucionais: as instituições não foram concebidas para esta</p><p>finalidade. Nestas circunstâncias, a interdisciplinaridade pode ser relacionada,</p><p>de fato, à indisciplina, isto é, uma subversão às normas de funcionamento vi­</p><p>gentes.</p><p>• obstáculos intelectuais: movimentar-se entre disciplinas pode gerar proble­</p><p>mas de legitimidade diante das regras de conformidade a cada uma delas, poden­</p><p>do atrair imputações de contaminações filosóficas e/ ou ideológicas (Faure, 1992).</p><p>• dificuldades teórico-metodológicas: mais especificamente, os problemas</p><p>de transposição dos vocabulários (por extensão, dos conceitos) e métodos de um</p><p>campo disciplinar</p><p>para outro (Moles, 1995).</p><p>Conforme Moles (1995), é possível compreender a atividade científica aca­</p><p>bada, constituída, como disciplinar (e disciplinada) - de maneira a permitir a</p><p>catalogação para posteriores revisões bibliográficas sobre o (cada vez mais</p><p>evanescente) estado da arte de determinado tópico de pesquisa. Assim, teremos</p><p>enormes pilhas de publicações como um dos produtos do afazer científico (e,</p><p>mais modernamente, os grandes bancos de dados da produção indexada como,</p><p>por exemplo, o Medline, no campo biomédico). No caso da ciência sendo feita,</p><p>contudo, pode-se pensar no campo caleidoscópico de possibilidades que se</p><p>descortinam e se modificam no decorrer do processo, no qual os contornos dos</p><p>tópicos de estudo ainda não estão bem delimitados e as categorias verdade e</p><p>falsidade ainda não podem ser definidas satisfatoriamente. Em suma, o momento</p><p>indisciplinado da produção científica.</p><p>Além do que, é importante assumir a imprecisão 2 como característica do</p><p>campo das ciências humanas e sociais. Ou, dizendo de outra forma, deve-se assu­</p><p>mir a inexatidão, sem com isto endossar juízos de valor que, ao estabelecerem as</p><p>disciplinas ditas exatas ("hard") como padrão de referência, passam a considerar</p><p>as que não atingem os critérios de cientificidade destas como, quando muito,</p><p>ciências menores, moles ("soft".)3.</p><p>Quanto ao adoecer humano, é inevitável encará-lo como um objeto de estu­</p><p>do indisciplinado, que resiste a nossas tentativas disciplinares de enquadramento.</p><p>Somente assim, acreditamos ser possível transitar por doenças (diseases) nas</p><p>populações e moléstias (illnesses) e suas representações nos grupos sócio-cultu¬</p><p>rais , assumindo os riscos de nos perdermos 4 pelos (des)caminhos indisciplinares,</p><p>em busca de compreensão para intervenções menos insatisfatórias do que as pre¬</p><p>valecentes no campo biomédico-epidemiológico atual.</p><p>No âmbito da saúde coletiva, a questão da interdisciplinaridade tem sido</p><p>objeto de discussão (Minayo, 1991; Nunes, s/d). Para Nunes (s/d: 6), no que diz</p><p>respeito à saúde, "a busca de ações integradas na prestação de serviços, ou a</p><p>associação da docência e serviço, ou a questão da interface entre o biológico e o</p><p>social passa pelo campo genericamente denominado de relações interdisciplina¬</p><p>res ". E, neste contexto, cada vez mais têm surgido ações ou propostas de atuação</p><p>conjunta congregando a epidemiologia e a antropologia médica. Ações ou pro­</p><p>postas estas em cujo núcleo estão plantadas as relações entre a cultura e o adoe­</p><p>cer das populações humanas.</p><p>Ocorre, no entanto, que, se por um lado a apreciação dos aspectos culturais</p><p>envolvidos no adoecer humano possibilita certamente uma análise mais profunda</p><p>das situações estudadas, por outro lado, a existência de certas diferenças entre a</p><p>epidemiologia e a antropologia pode representar obstáculos a uma cooperação</p><p>mútua.</p><p>Considerar a atuação conjunta destas disciplinas, pensá-la sob a ótica crítica</p><p>da epidemiologia, acompanhar a história desta atuação, analisar os pontos de</p><p>contato e afastamento destas disciplinas, são os objetivos deste texto.</p><p>NOTAS HISTÓRICAS SOBRE A COLABORAÇÃO ENTRE A</p><p>EPIDEMIOLOGIA E A ANTROPOLOGIA</p><p>Segundo Trostle (1986a), a epidemiologia e a antropologia aproximaram-se</p><p>entre si quando da fundação de ambas no século XIX, no bojo de três correntes</p><p>do pensamento epidemiológico de então, que consideraram os aspectos sociais,</p><p>comportamentais e culturais envolvidos na questão saúde-doença. Foi quando,</p><p>no contexto de uma história pouco explorada, como afirma o autor citado, convi­</p><p>veram uma "epidemiologia biológica/parasitológica", voltada para as relações</p><p>entre o comportamento humano e a biologia dos agentes et iológicos, uma</p><p>"epidemiologia sociológica ", que enfatizava os aspectos políticos e econômicos</p><p>com repercussões sobre a saúde humana, e uma "epidemiologia histórica ou geo­</p><p>gráfica", centrada nas características temporais e espaciais das doenças. Ao con­</p><p>siderar estes movimentos dos anos 1800, o autor citado identifica elementos an­</p><p>tropológicos nos estudos de Peter Panum sobre o sarampo nas ilhas Faroe, nas</p><p>investigações de John Snow sobre a cólera em Londres, nos trabalhos e registros</p><p>estatísticos sobre a Inglaterra e Gales produzidos por William Farr, nos trabalhos</p><p>médico-sociais de Rudolf Virchow, nas pesquisas sociológicas sobre suicídio</p><p>realizadas por Emile Dürkheim e na geografia médica de August Hirsh, o primei­</p><p>ro a utilizar a expressão antropologia médica, como esclarece Trostle.</p><p>Trata-se esta, no entanto, como sublinha Trostle (1986a), de uma taxonomia</p><p>que admite superposições. Vale o esclarecimento, pois será sempre difícil per­</p><p>ceber autores de concepções tão diferentes como Snow e Farr alinhados em</p><p>uma "epidemiologia biológica/parasitológica", ou Virchow e Dürkheim al­</p><p>bergados lado a lado em uma "epidemiología sociológica". De qualquer modo,</p><p>tal discussão não elimina o esforço de mapeamento histórico desenvolvido pelo</p><p>autor.</p><p>Posteriormente, com o advento da microbiologia no último terço do século</p><p>XIX e a concentração das pesquisas epidemiológicas na etiologia biológica espe­</p><p>cífica, o interesse pelos fatores sociais envolvidos na causalidade das doenças</p><p>diminuiu e só retornou nas décadas de 1920 e 1930. Com o surgimento das doen­</p><p>ças não infecciosas enquanto doenças de massa e o concurso de uma epidemiologia</p><p>destas doenças e de uma "medicina comunitária ", forjadas ambas na perspectiva</p><p>da causalidade múltipla, a pesquisa dos efeitos da cultura e da sociedade sobre a</p><p>saúde foi revitalizada (Trostle, 1986b).</p><p>No entender de Trostle (1986b), porém, esta revitalização não teve o caráter</p><p>político revolucionário das propostas e idéias contidas nos trabalhos de Friedrich</p><p>Engels, sobre as condições de saúde dos trabalhadores ingleses dos anos 1800, e</p><p>de Rudolf Virchow. Nesta fase, a tônica dos trabalhos e pesquisas se aproxima­</p><p>ram muito mais das idéias reformistas de base atuarial-previdenciária nos moldes</p><p>do pensamento de Edwin Chadwick, por exemplo.</p><p>Para Dunn & Janes (1986), as colaborações entre a epidemiologia e a antro­</p><p>pologia se iniciaram, mais recentemente, por volta de 1950, principalmente em</p><p>duas áreas: a da epidemiologia psiquiátrica e a das pesquisas epidemiológicas de</p><p>doenças infecciosas em sociedades tradicionais em países pobres. Tendo, poste­</p><p>riormente, estas colaborações se dirigido em maior escala para a área das doen­</p><p>ças crônicas não infecciosas.</p><p>Trostle (1986b) releva na história da colaboração entre a epidemiologia e a</p><p>antropologia, a experiência do projeto Polela, desenvolvido na África do Sul nas</p><p>décadas de 1940 e 1950. No Polela, foram desenvolvidos os trabalhos de Sidney</p><p>e Emily Kark e de John Cassei, na perspectiva de uma "epidemiología social"</p><p>(norte-americana, é bom frisar aqui para diferenciá-la da epidemiología social</p><p>latino-americana de autores como o equatoriano Jaime Breilh [1988], de cunho</p><p>marcadamente marxista). Os trabalhas dos Karks e de Cassei resultaram, em 1945,</p><p>na fundação do Institute of Family and Community Health, instituição que seguiu</p><p>uma linha de ação multidisciplinar voltada para a promoção da saúde comunitá­</p><p>ria, atuando junto aos líderes tribais sul-africanos. Nos anos 1950, com as rea­</p><p>ções ao projeto Polela movidas pelo governo racista da África do Sul, os Karks e</p><p>John Cassei emigraram para os Estados Unidos e, a partir do Departamento de</p><p>Epidemiologia da University of North Carolina, em Chapel Hill, irradiaram suas</p><p>idéias e seus trabalhos internacionalmente.</p><p>Nas décadas de 1960 e 1970, John Cassei tornou-se um dos grandes nomes</p><p>da epidemiologia moderna, discutindo o envolvimento do cultural e do social no</p><p>adoecer humano e publicando trabalhos onde investigava a contribuição das ciên­</p><p>cias sociais para a epidemiologia (1964), o processo psicossocial e o estresse</p><p>(1974) e a influência do meio social na resistência do hospedeiro (1976).</p><p>Deve ser anotado que</p><p>tanto Trostle (1986b) quanto Nations (1986) citam,</p><p>como pioneiro na história do trabalho conjunto da epidemiologia e da antropolo­</p><p>gia, o artigo de A. C. Fleck & F. J. A. Ianni intitulado "Epidemiology and</p><p>Anthropology: some suggested affinities in theory and method", de 1958. O arti­</p><p>go não alcançou reconhecimento na época de sua publicação, como explica o</p><p>citado Trostle, e apresentou como um dos eixos de discussão a questão da causa­</p><p>lidade múltipla.</p><p>Para a expressiva produção de trabalhos enfocando ou sugerindo aborda­</p><p>gens reunindo a epidemiologia e a antropologia em meados dos 1900, Trostle</p><p>(1986b) aponta algumas possíveis causas, como o crescimento do interesse de</p><p>ambas as disciplinas no aumento da mobilidade social das populações humanas,</p><p>o ressurgimento das considerações sobre o comportamento humano enquanto</p><p>elemento envolvido na questão saúde-doença e o provimento de recursos finan­</p><p>ceiros para as pesquisas contemplando estas abordagens.</p><p>Iniciativas como projetos de intervenção e trabalhos posteriores do Departa­</p><p>mento de Epidemiologia da University of North Carolina, Chapel Hill, foram,</p><p>contudo, sempre marginais diante dos grupos de poder, afirma Trostle (1986b).</p><p>Envolvendo populações pobres, estiveram fadadas à extinção ou ao aniquila­</p><p>mento pelos cortes de recursos, apesar do sucesso, do seu êxito técnico.</p><p>Mais recentemente, nos anos 1970 e 1980, o interesse das agências interna­</p><p>cionais de financiamento pela atuação conjunta da epidemiologia e da antropolo­</p><p>gia vem acompanhando o desenvolvimento de campanhas de vacinação e ações</p><p>de controle de algumas endemias, através de programas "transdisciplinares"</p><p>(Nations, 1986). Um interesse que surgiu com a relativização do sucesso destas</p><p>ações, atribuída muitas vezes ao seu descolamento cultural, ao desconhecimento</p><p>das representações de saúde e doença locais e, consequentemente, das próprias</p><p>repercussões deste tipo de atitude no resultado das ações (Uchôa & Vidal, 1994).</p><p>Além disso, é fato conhecido que a ocorrência da pandemia de AIDS, tragé­</p><p>dia extrema de nossos dias, tem requerido cada vez mais o concurso de interven­</p><p>ções e pesquisas interdisciplinares para o seu estudo e controle.</p><p>No fechamento desta abordagem histórica, fica a impressão de que um pon­</p><p>to de vista que considere a importância dos comportamentos, dos hábitos e costu­</p><p>mes e a utilização de elementos culturais no contexto em que se dá o enfrentamento</p><p>da doença humana, nos levará à perspectiva de um trabalho conjunto entre</p><p>epidemiologia e antropologia. Ainda que estas empresas conjuntas possam alber­</p><p>gar concepções distintas sobre a natureza do social e do indivíduo envolvidos,</p><p>bem como sobre as formas deste envolvimento. Afinal, antropólogos são vários e</p><p>têm lá suas diferentes visões de mundo e propósitos, e epidemiologistas também.</p><p>Ambas as disciplinas admitem perspectivas diversas no tratamento dos seus res­</p><p>pectivos objetos, operando conceitos segundo diferentes pressupostos.</p><p>A QUESTÃO DA CULTURA: PONTO DE CONTATO ENTRE A</p><p>EPIDEMIOLOGIA E A ANTROPOLOGIA?</p><p>Para Geertz (1989: 14, 15,24, 40), todo o estudo da antropologia surgiu "em</p><p>torno do conceito de cultura", conceito que a disciplina tem "se preocupado</p><p>cada vez mais em limitar, especificar, enfocar e conter", buscando uma "dimen­</p><p>são justa " de abordagem. Na perspectiva do autor citado, o conceito de cultura é</p><p>"essencialmente semiótico " e está relacionado às "dimensões simbólicas da ação</p><p>social". Aos "sistemas entrelaçados de signos interpretáveis", de símbolos que</p><p>permitem aos indivíduos e aos grupos sociais a interpretação e a orientação de</p><p>suas ações e que lhes proporcionam uma identidade social.</p><p>Geertz (1989: 15) assume a antropologia, portanto, "não como uma ciência</p><p>experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura</p><p>de significados ".</p><p>A cultura embebe tanto as representações de saúde e doença quanto as re­</p><p>presentações terapêuticas (Helman, 1994). Ao conceito de cultura, portanto, na</p><p>antropologia médica, são pertinentes as formas sociais de expressão da doença,</p><p>os modos de prevenção e enfrentamento da doença, e a escolha dos meios de</p><p>tratamento. Além do que, os hábitos, costumes e crenças que participam da vida</p><p>humana, das formas de se viver, orientam certas práticas alimentares e religiosas,</p><p>certos padrões de organização familiar e comportamentos que interferem positi­</p><p>va ou negativamente na saúde.</p><p>A epidemiologia, por sua vez, persegue o experimento e o artifício da</p><p>quantificação, e tem sido definida como o estudo da distribuição da doença e de</p><p>seus determinantes em populações humanas. Embora a base de certos conceitos</p><p>que a integram, como os de endemia e epidemia, tenha sido estabelecida pela</p><p>medicina grega hipocrática, nos séculos V e IV a . C , em referência às doenças</p><p>que habitam um lugar e às que o visitam, a epidemiologia precisava da estatística</p><p>e da clínica para contar e medir a ocorrência das doenças nas populações huma­</p><p>nas.</p><p>A estatística apareceu com a necessidade dos Estados nacionais mercantilistas</p><p>do século XVII de contarem suas populações para mensurar suas riquezas e seu</p><p>potencial bélico. E a clínica médica, com sua base classificatória pautada na com­</p><p>binação de sintomas, sinais e localizações anatômicas, como revelou Foucault</p><p>(1977), nasceu entre os séculos XVIII e XIX, dentro dos hospitais já transforma­</p><p>dos em recursos terapêuticos e educacionais pelos revolucionários franceses. Uma</p><p>base classificatória à qual o saber clínico agregou posteriormente, no decorrer do</p><p>século XIX, os critérios de mensuração estatística de normal e patológico da</p><p>fisiologia de Claude Bernard (Canguilhem, 1990).</p><p>Pensar desta forma a epidemiologia não é, no entanto, desconhecer a sua</p><p>formação histórica própria enquanto disciplina do coletivo, fundamentada nos</p><p>movimentos médico-sociais do século XIX. As características que devem distingui-</p><p>la da clínica em função do modo como seu objeto deve ser percebido neste cole­</p><p>tivo das populações humanas, do modo como, no entender de Ayres (1993), deve</p><p>ser apreendida a substância social do seu objeto.</p><p>In ic ia lmente vo l t ada para as d o e n ç a s in fecc iosas (Fros t , 1941) , a</p><p>epidemiologia incorporou as doenças não-infecciosas (MacMahon et ai, 1965),</p><p>enquanto as novas doenças de massa carac ter ís t icas do enve lhec imen to</p><p>populacional do século XX, e, posteriormente, a avaliação de serviços e tecnologias</p><p>de saúde (Acheson, 1975) e os agravos resultantes das diversas formas de violên­</p><p>cia.</p><p>Como aponta Almeida Filho (1989: 19, 20), para estudar estas ocorrências,</p><p>o "raciocínio epidemiológico " acompanha a ciência moderna, e "traduz a lógica</p><p>causai em termos probabilísticos (...) adotando e desenvolvendo o método</p><p>observacional aplicado à pesquisa em populações (grifos no original)". Assim,</p><p>segundo o autor, o termo "observacional" caracteriza a estratégia comparativa</p><p>da disciplina e o termo "probabilístico " a sua disposição quantitativa.</p><p>Na busca de uma relação causal a epidemiologia procura associações esta­</p><p>tísticas entre os possíveis fatores determinantes e a ocorrência de doenças em</p><p>populações humanas. Fatores biológicos próprios das doenças são combinados a</p><p>outros determinantes que podem estar entre as características individuais dos</p><p>membros das populações estudadas, como sexo e idade, características sócio­</p><p>econômicas, como renda e profissão, geográficas, relacionadas às formas de ocu­</p><p>pação do espaço, e outras ligadas à cultura, aos hábitos e comportamentos.</p><p>Para compor este processo de investigação, foi modelada na década de 1950</p><p>a idéia probabi l ís t ica de risco. Termo que passou a adjet ivar os fatores</p><p>determinantes, denominados a partir de então de fatores de risco.</p><p>O objetivo da disciplina, em linguagem estatística, é investigar comparati­</p><p>vamente a distribuição destes fatores na população, identificando também os in­</p><p>divíduos doentes. As associações</p><p>estatísticas encontradas fundamentarão a pro­</p><p>vável determinação da ocorrência da doença, orientando, então, a aplicação de</p><p>medidas para controlá-la.</p><p>Assim, em sua pretensão de controle, a epidemiologia tem como "compro­</p><p>misso fundamental (...) a produção de conhecimento em si" sobre "padrões de</p><p>distribuição da ocorrência de doenças em populações ". Algo que, por si só, j á</p><p>admite o seu envolvimento com um social, expresso na ambição de lidar com</p><p>populações humanas. E é nesta perspectiva de conhecer antes para, então, con¬</p><p>trolar, que se insere a intenção de prever. Uma intenção que, num sentido mais</p><p>amplo, é parte fundamental do projeto científico moderno como um todo.</p><p>O que deve ser examinado, então, em relação à epidemiologia, é a consistên­</p><p>cia entre a pretensão de controlar e prever ocorrências e a forma como se estrutu­</p><p>ra diante do projeto de investigar o adoecer das populações humanas. E, mais</p><p>especificamente, como ocorreria a assimilação dos aspectos culturais e a com­</p><p>preensão de suas relações com o adoecer humano, na perspectiva de uma atuação</p><p>interdisciplinar com a antropologia. Sendo necessário, para isto, reavaliar o pro­</p><p>pósito básico da epidemiologia moderna, qual seja o de estabelecer leis univer­</p><p>sais quanto às relações entre exposições e doença, baseadas em estudos de base</p><p>amostral/probabilística, independentes do contexto em que estas relações se dão.</p><p>Aliás, diversos representantes da epidemiologia anglo-saxônica começam a</p><p>admitir as limitações da abordagem desta disciplina diante da profusão de estu­</p><p>dos inconclusivos para o estabelecimento de fatores de risco de doenças a deter­</p><p>minadas exposições. Os comitês editoriais de publicações médicas importantes,</p><p>como o Lancet e o New England Journal of Medicine, começam a discutir crité­</p><p>rios que envolvem, além de aspectos de rigor metodológico, os resultados obti­</p><p>dos - a magnitude do risco relativo encontrado (acima de três ou quatro) - para</p><p>justificar a publicação do trabalho. Argumenta-se que os problemas de controle</p><p>de erros s i s temát icos (vieses) e confounding (var iáveis de confusão ou</p><p>confundimento) muitas vezes, incontornáveis. E, mesmo quando não parecem</p><p>haver falhas a este respeito, os achados devem ser muito significativos para se­</p><p>rem divulgados (Taubes, 1995). Parece, assim, que na impossibilidade de uma</p><p>contextualização social consistente no estudo dos estados de saúde nas popula­</p><p>ções, a epidemiologia preocupa-se cada vez mais em apurar seus métodos de</p><p>desenho, análise e interpretação através de um controle rigoroso de erros.</p><p>O modelo implícito nesta proposta mencionada parece muito mais o de uma</p><p>toxicologia humana que o de uma eco-antropo-biologia humana (como diria Edgar</p><p>Morin), que procuraria compreender o adoecer coletivo humano numa perspecti­</p><p>va complexa. Um questionamento pertinente diante de tal proposta é apresentado</p><p>por Wing (1994: 74) ao discutir estudos epidemiológicos referentes à dose-res¬</p><p>posta entre radiação e câncer, quando afirma, ao nosso ver, com razão, que as</p><p>"relações exposição-doença não são fenômenos auto-contidos, homogêneos ou</p><p>independentes (...)", e, assim, "constituem-se em objetos inadequados da ciên­</p><p>cia epidemiológica ".</p><p>PONTOS DE AFASTAMENTO ENTRE A EPIDEMIOLOGIA E A</p><p>ANTROPOLOGIA: "ESSA DANADA DA MOLESTA"</p><p>De maneira geral, podem ser encontradas concordâncias, ainda que não com­</p><p>pletas, sobre os pontos de afastamento entre a epidemiologia e a antropologia</p><p>(Dunn & Janes, 1986; Nations, 1986; Lupton, 1993; Shiller et al, 1994; Uchôa &</p><p>Vidal, 1994; Inhorn, 1995).</p><p>Considerando com primazia a epidemiologia, dois destes pontos de afasta­</p><p>mento parecem ser os principais. Um diria respeito à natureza quantitativa da</p><p>pesquisa epidemiológica, que suportaria a dicotomia quantidade/qualidade em</p><p>relação à natureza qualitativa da pesquisa antropológica. Outro seria a visão</p><p>epidemiológica da doença humana, que privilegia a taxonomia clínica, da biome­</p><p>dicina ocidental por excelência - diseases, e despreza as representações, o ponto</p><p>de vista do paciente - illnesses, e da ordem sócio-cultural - sicknesses, domínios</p><p>dos aspectos simbólicos privilegiados pela antropologia, onde residiria a singula­</p><p>ridade mais rica dos indivíduos e das culturas.</p><p>Vale salientar que a perspectiva clínico-epidemiológica constrói o fenômeno</p><p>dito doença a partir de modelos de raciocínio causal baseados em uma evolução</p><p>de eventos onde os elementos semiológicos (respectivos sinais e sintomas) são</p><p>decorrentes de uma entidade nosográfica, que surgiu a partir de processos consi­</p><p>derados patogênicos, em função de uma etiologia (Rizzi & Pedersen, 1992). O</p><p>diagnóstico clínico, no entanto, conforme as circunstâncias, não consegue esta­</p><p>belecer satisfatoriamente todos estes níveis, e com isto a própria definição</p><p>diagnóstica fica determinada por tais contingências. Há situações em que é possí­</p><p>vel delimitar a etiologia (na meningite meningocócica); em outras, parte-se dos</p><p>mecanismos patogênicos (no saturnismo); ou, tão-somente, é viável pensar em</p><p>termos manifestacionais (na doença hipertensiva).</p><p>A taxonomia clínico-epidemiológica tende a ser monotética, ou seja, baseia-</p><p>se na lógica formal, onde a explicação de um dado conceito se prende à sua</p><p>definição unívoca - que só é possível mediante a identificação de propriedades/</p><p>atributos/características comuns a todos os elementos incluídos no conceito</p><p>(Vineis, 1993), de modo a trazer homogeneidade e, portanto, alguma ordem (pos­</p><p>sível) ao mundo multifenomênico.</p><p>Os problemas para a definição diagnóstica se tornam cruciais quando não é</p><p>possível ordenar com precisão os fenômenos sob nenhuma das citadas catego­</p><p>rias, como sucede em muitas entidades psiquiátricas. Aliás, é importante frisar</p><p>que estas impropriamente ditas doenças mentais nunca não foram agrupadas na</p><p>língua inglesa sob a rubrica disease, mas, sim, illness. Deste modo, passa-se a</p><p>utilizar com frequência na linguagem especializada a designação portuguesa trans­</p><p>torno nas tentativas de nomear os fenômenos em questão.</p><p>Uma possibilidade interessante seria utilizar a palavra moléstia. Esta diz res­</p><p>peito tanto a sofrimento físico como moral. "Molestado " também pode significar</p><p>"maltratado " e nada mais apropriado para designar as formas de tratamento dis­</p><p>pensadas, em geral, a grandes contingentes de nossa população. Idéia que pode</p><p>ser associada, por vizinhança semântica, às formas de terapêutica muitas vezes</p><p>inadequadas (para não dizer lesivas) em virtude de um emaranhado de fatores -</p><p>que incluem precariedade das condições de trabalho (em termos financeiros,</p><p>materiais); despreparo técnico; negligência profissional, entre outros aspectos,</p><p>(perdoem-nos o chiste: parece ficar pairando uma atmosfera de justificação da</p><p>firmeza/rigor das ciências humanas e sociais ante os supostos sobrolhos de críti­</p><p>ca dos pesquisadores "duros", a ponto de imaginar uma intervenção picaresca:</p><p>são moles ou querem mais?!)</p><p>Atualmente, diante das complexas relações epidemiológicas, sócio-econô¬</p><p>micas, culturais, biológicas (tanto ecológicas como evolucionárias), entre outras</p><p>que envolvem indivíduos e seu entorno, as infeções emergentes (onde a febre</p><p>hemorrágica pelo vírus Ebola se tornou o paradigma) vêm sendo consideradas</p><p>como resultantes de desequilíbrios nestas interações. Sob esta ótica, não é mais</p><p>suficiente considerar as enfermidades humanas, mas, o fenômeno adoecimento</p><p>de modo abrangente, com outros modelos para sua conceptualização. Aliás, sob</p><p>este aspecto, o termo moléstia se mostra pertinente, pois também diz respeito a</p><p>doenças de plantas e animais, suposta origem das novas doenças infecciosas.</p><p>Assim, é realmente possível que a taxonomia nosográfica, ao classificar as</p><p>doenças em infecciosas, ambientais, psicossomáticas/auto-imunes, genéticas e</p><p>degenerativas, permaneça válida somente em relação a um número bem delimita­</p><p>do de situações (Levins et ai, 1993). Nesta perspectiva,</p><p>sem julgar o mérito es­</p><p>pecífico de tal idéia, algo que fugiria aos objetivos deste texto, vale citar a pro­</p><p>posta do Institute of Medicine (Lederberg et ai, 1992) norte-americano segundo</p><p>a qual as infeções ditas emergentes podem ser categorizadas conforme os fatores</p><p>responsáveis por sua eclosão (demográficos; comportamentais; tecnológico-in-</p><p>dustriais; relativos ao desenvolvimento da agricultura e uso da terra; relativos a</p><p>deslocamentos populacionais - viagens e comércio; capacidade de adaptação e</p><p>mutação microbiana; falência de medidas de saúde pública), ao invés de fazê-lo</p><p>por tipo de agentes (vírus, bactérias, protozoários, fungos, helmintos).</p><p>Embora não seja nossa intenção mergulhar mais profundamente na intrincada</p><p>discussão a respeito da pertinência dos conceitos e definições de doença e suas</p><p>taxonomias 5 , alguns comentários ainda se fazem necessários quanto à possível</p><p>contradição de propósitos nas concepções de doença, de saúde e de assistência à</p><p>saúde. Há evidências da disposição de idéias distintas sobre cada um destes as­</p><p>pectos conforme as circunstâncias, os lugares e papéis assumidos (Seedhouse,</p><p>1993). Por exemplo: a instância responsável pela alocação de recursos para a</p><p>saúde vis a vis instâncias encarregadas pela prestação dos serviços; o médico em</p><p>relação ao paciente; o serviço público de saúde versus o particular, o clínico em</p><p>comparação com o epidemiologista.</p><p>Considerando o nosso tema central de discussão, qual seja o da atuação con­</p><p>junta da epidemiologia e da antropologia, alguns autores propõem uma inversão</p><p>de pontos de vista ao sugerirem que, a rigor, a categoria disease, mais bem defi­</p><p>nida, seria um caso particular da categoria illness - que pode ser traduzida por</p><p>moléstia - sensação difusa de haver algo desagradável, incômodo (perceber-se</p><p>molesto). Esta, sim, constituir-se-ia, por hipótese, na ponte teórica entre as ins­</p><p>tancias epidemiológicas e antropológicas. E, seria, talvez, o objeto de estudo de</p><p>urna "etnoepidemiologia" (Almeida-Filho, 1992: 111), que poderia configurar­</p><p>se na interdisciplina possível resultante da conjunção destes campos disciplina­</p><p>res...</p><p>Porém, nesta nossa incursão no diálogo interdisciplinar, restam difíceis ques­</p><p>tões metodológicas para serem apreciadas, como a que se refere às características</p><p>das unidades de estudo ou observação, com os epidemiologistas trabalhando</p><p>amostras populacionais probabilísticas, um número maior de indivíduos, e os</p><p>antropólogos mais preocupados com abordagens dirigidas ao nível do pessoal,</p><p>com as decorrentes formas distintas de colher, processar e analisar as informa­</p><p>ções. A epidemiologia prefere a padronização de dados extraídos de fontes se­</p><p>cundárias ou através de procedimentos ad hoc onde a preocupação maior é a de</p><p>controlar as respostas, normatizá-las, enquanto a antropologia busca a interpre­</p><p>tação de narrativas, procurando se aprofundar nos elementos simbólicos contidos</p><p>nos discursos.</p><p>Na medida em que trabalham com "grandes agregados populacionais " de­</p><p>finidos segundo cr i té r ios de "limites" geográ f i cos , admin i s t r a t i vos ou</p><p>demográficos, os epidemiologistas, no entender de Dunn & Janes (1986: 7), não</p><p>"assumem" verdadeiramente o relacionamento interpessoal, pois se orientam</p><p>apenas pelas variáveis epidemiológicas clássicas como "sexo, idade, local de</p><p>residência, etc.". Para os autores, a epidemiologia, desta forma, operaria uma</p><p>abordagem "horizontal", ao passo que os antropólogos operam uma abordagem</p><p>profunda, "vertical". Com um ponto de vista semelhante, Barreto & Alves (1994:</p><p>134) opinam que a epidemiologia, por se fundamentar em pressupostos estrutu­</p><p>rais funcionalistas, desconhece o que integra e conforma o coletivo, onde "os</p><p>indivíduos constantemente monitoram suas ações em processos interativos, ne­</p><p>gociando, adaptando e modificando significados e contextos, assegurando a si</p><p>mesmos e aos outros a validade destas ações ".</p><p>No que se refere à coleta de dados, vale assinalar observações de Nations</p><p>(1986) a partir de suas investigações realizadas no Ceará, no interior do Brasil,</p><p>na primeira metade dos anos 1980. A autora, através de abordagens antropológi­</p><p>cas de entrevistas domiciliares, encontrou diferenças importantes em relação ao</p><p>número de óbitos de crianças constantes dos registros oficiais e ao número de</p><p>casos de diarréia, também em crianças, computados por um estudante de medici­</p><p>na envolvido em uma pesquisa realizada no local.</p><p>Quanto aos óbitos, Nations (1986) aponta que o sub-registro oficial pode</p><p>estar relacionado às mortes de recém-nascidos, "anjinhos" ("angelinhos" na</p><p>publicação original), que são consideradas pela população local como coisas mais</p><p>afeitas à Deus que aos médicos, sendo as crianças encaminhadas às "rezadeiras "</p><p>e, quando morrem, enterradas clandestinamente, escapando aos registros oficiais.</p><p>Já no caso da morbidade por diarréia, Nations percebeu em seus estudos, nas</p><p>narrativas que ouviu, que as perguntas do estudante de medicina eram respondi­</p><p>das negativamente justamente porque ele inquiria sobre diarréia e não, por exem­</p><p>plo, sobre "quenturc," ( "quintura " na publicação original) no intestino, uma re­</p><p>presentação local de diarréia. Continuando, a autora citada chama a atenção para</p><p>as implicações destes fatos na composição dos indicadores de mortalidade e</p><p>morbidade e indaga, com referência ao estudo das doenças infecciosas, seu obje­</p><p>to de atenção, se o "rigor" pretendido pela epidemiologia não poderia, na reali­</p><p>dade, significar um "rigor mortis " da própria pesquisa epidemiológica. Um</p><p>q u e s t i o n a m e n t o que , sem dúv ida , poder ia ser c o l o c a d o pa ra a p rá t ica</p><p>epidemiológica como um todo.</p><p>É interessante, agora, pensar a questão do risco epidemiológico que está</p><p>imbricada na distinção dos olhares da epidemiologia e da antropologia. Sobre</p><p>isto Lupton (1993) afirma que, apesar do conceito de risco ser originalmente</p><p>utilizado com referência à probabilidade estatística da ocorrência de um evento,</p><p>ele está cada vez mais, na atualidade, ligado à idéia de perigo. Em saúde pública,</p><p>explica Lupton, são usados dois discursos sobre o risco. O primeiro diz respeito à</p><p>exposição de populações aos riscos ambientais, como poluição e lixo nuclear, e o</p><p>segundo enfoca o risco dos estilos de vida conformando livres-escolhas pessoais,</p><p>opções individuais de vida.</p><p>Shiller et al. (1994), por sua vez, apontam que um determinado uso do con­</p><p>ceito de cultura pela epidemiologia na definição de "grupos de alto risco " para a</p><p>AIDS, tem conduzido a um processo de isolamento das pessoas incluídas nesta</p><p>categoria. Os autores revelam resultados de uma pesquisa realizada em 1988 com</p><p>portadores do vírus da AIDS de New Jersey, e chamam a atenção para o fato de</p><p>que a maioria destes não apresenta os comportamentos estereotipados atribuídos</p><p>pelas rotulações do risco epidemiológico da doença. Assim, esta marginalização</p><p>e este distanciamento impostos às pessoas pertencentes aos grupos de risco para</p><p>a AIDS constituem, na verdade, uma forma de considerá-las já doentes, e, por­</p><p>tanto, um risco para os que não o são. Trata-se de uma consideração preconceituosa</p><p>do "outro ", do "diferente ", que perde, então, sua referência em relação à popu­</p><p>lação em geral. A idéia de cultura, nesta perspectiva de uma epidemiologia da</p><p>AIDS, seria uma forma de colonização de populações "exóticas" e distantes,</p><p>cujo propósito é submetê-las, subordiná-las aos padrões dominantes.</p><p>Convém neste momento da discussão reportar que, no âmbito de sua antro­</p><p>pologia interpretativa, Geertz (1989) assinala que está na perspectiva da visão da</p><p>cultura como um emaranhado de signos interpretáveis, a aproximação dos povos.</p><p>Pois, na medida em que se investiga o exótico, compreende-se seu contexto e</p><p>reconhece-se sua lógica particular de tal forma a respeitá-la, a incluí-la no con­</p><p>texto mais geral do mundo. Como diz Geertz (1989:24), "compreender a cultura</p><p>duas partes. A primeira, de cunho</p><p>mais teórico, corresponde aos seis primeiros capítulos e a segunda parte trata de</p><p>estudos etnográficos. Em ambas, há participação de pesquisadores estrangeiros</p><p>que, com exceção de dois deles, analisam aspectos da realidade brasileira.</p><p>A coletânea abre com o trabalho de Alves e Rabelo (Núcleo de Estudos em</p><p>Ciências Sociais e Saúde - ECSAS - da Universidade Federal da Bahia). Nesse</p><p>capítulo é analisado brevemente o processo de formação das ciências sociais em</p><p>saúde no Brasil, o lugar que ocupam no cenário acadêmico e as questões teórico-</p><p>metodológicas com que se defrontam os trabalhos mais recentes. Em seguida, o</p><p>texto de Minayo (capítulo 2) apresenta alguns desafios, caminhos de possibilida­</p><p>des e rumos tomados pela antropologia da saúde no Brasil. Utilizando-se do con­</p><p>ceito de campo de Bourdieu, de creditação científica de Latour e de prática</p><p>transepistêmica e transcientífica de Knorr-Cetina, a autora (Escola Nacional de</p><p>Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz) analisa basicamente duas questões: a</p><p>existência de uma certa dependência "adolescente" ou colonialista nas fontes</p><p>bibliográficas em um campo de conhecimento "nativo" que apresenta um cres­</p><p>cente desenvolvimento dentro da nossa realidade e a aleatoriedade dos temas</p><p>investigados por essa disciplina. Como conclusão, Minayo expõe seis itens que</p><p>considera relevantes para o desenvolvimento da antropologia médica ou da saú­</p><p>de no Brasil.</p><p>Gil Sevalho e Luís David Castiel (Escola Nacional de Saúde Pública), no</p><p>terceiro capítulo, colocam em pauta questão central, subjacente a esta coletânea:</p><p>o diálogo, crítica, encontros e desencontros entre a antropologia médica e outras</p><p>disciplinas do campo da saúde pode, de fato, conduzir, a uma abordagem verda­</p><p>deiramente interdisciplinar? Para abordar o tema da interdisciplinaridade possí­</p><p>vel entre a antropologia médica e a epidemiologia, os autores empreendem uma</p><p>reflexão instigante que, como os capítulos anteriores, parte da história; isso é, do</p><p>processo de constituição dessas disciplinas e de suas relações. Diferente dos tra­</p><p>balhos de Alves/Rabelo e Minayo, entretanto, o locus principal da discussão é a</p><p>epidemiologia: a partir de uma análise do objeto e objetivos da investigação</p><p>epidemiológica os autores examinam as possibilidades e dificuldades do diálogo</p><p>com a antropologia.</p><p>Eduardo Menéndez (CIESAS - México) prossegue no exame das relações</p><p>entre epidemiologia e antropologia médica (capítulo 4) a partir de um enfoque</p><p>crítico. Adota o ponto de vista de que qualquer discussão a respeito das conver­</p><p>gências e divergências entre estas disciplinas exige um trabalho de identificação</p><p>e desconstrução dos principais conceitos com que elas operam; trabalho que per­</p><p>mita trazer a tona sua história e vinculação com tradições teóricas específicas. Ao</p><p>empreender tal análise, Menéndez mostra como vários dos conceitos usados na</p><p>epidemiologia tem uma raiz - ignorada ou neglicenciada - nas ciências sociais.</p><p>A incorporação de uma discussão acerca das dimensões social e cultural dos</p><p>fenômenos de saúde e doença pela epidemiologia, argumenta o autor, descreve</p><p>um processo em que conceitos e métodos são isolados dos corpos teóricos em</p><p>que foram originalmente formulados e, assim empobrecidos, recompostos em</p><p>abordagens que tendem a reduzir essas dimensões a uma soma de fatores isola­</p><p>dos e mensuráveis. Para o autor não se trata apenas de uma desconhecimento da</p><p>teoria antropológica por parte dos epidemiologistas, sem maiores conseqüências,</p><p>mas de uma lacuna teórica que tem implicações na qualidade dos resultados das</p><p>pesquisas epidemiológicas e no seu potencial para orientar práticas/políticas de</p><p>saúde.</p><p>As relações entre antropologia e epidemiologia são tema também do artigo</p><p>de Mabel Grimberg (Universidade de Buenos Aires) no capítulo 5. Partindo da</p><p>identificação dos principais aspectos que diferenciam e separam essas duas abor­</p><p>dagens, observa que de ambos os lados opera uma tendência a reificação, que</p><p>certamente dificulta qualquer possibilidade de diálogo. A epidemiologia opera</p><p>com de uma visão naturalizada dos processos de saúde e doença que justifica</p><p>tratar as coletividades que vivenciam tais processos como meros agregados so­</p><p>ciais, caracterizados pela soma de aspectos/fatores sociais e culturais. A antropo­</p><p>logia, por sua vez, com sua forte ênfase na construção cultural da saúde/doença</p><p>nos símbolos e ideologias que entram em tais construções - termina por negli­</p><p>genciar a dimensão propriamente material ou física do sofrimento. Grimberg con­</p><p>clui sua análise apresentando alguns pontos que considera necessários para a</p><p>superação de visões reificadas e simplistas no estudo das experiências, práticas e</p><p>processos de saúde e doença.</p><p>O último texto da primeira parte da coletânea (capítulo 6) é de Alves e Rabelo</p><p>(ECSAS - Universidade Federal da Bahia). Nesse artigo, os autores analisam</p><p>algumas questões teóricas e metodológicas relacionadas ao estudo das "repre­</p><p>sentações e práticas" em saúde, objeto privilegiado da antropologia. Embora não</p><p>abordem diretamente a relação da antropologia da saúde com outras disciplinas,</p><p>os autores discutem a especificidade do olhar antropológico, apresentando os</p><p>desafios que os estudiosos enfrentam ao trazer algumas questões centrais da an­</p><p>tropologia contemporâneas para a investigação dos fenômenos da saúde e doen­</p><p>ça.</p><p>A segunda parte da coletânea inicia com o trabalho do italiano Andrea Caprara</p><p>(Universidade de Torino e ex-professor visitante do Instituto de Saúde Coletiva</p><p>da Universidade Federal da Bahia). Nesse capítulo já não é mais tematizada a</p><p>epidemiologia, senão a própria biomedicina. Caprara parte do conceito de "mé­</p><p>dico ferido" proposto por Gadamer para empreender uma reflexão crítica da bio­</p><p>medicina a luz do olhar antropológico. Ao invés de deter-se em uma exposição</p><p>dos pressupostos norteadores da prática médica ocidental, o autor elucida as li­</p><p>mitações a ela inerentes a partir do contraponto oferecido pela abordagem do</p><p>candomblé a doença e cura. O autor dedica-se a uma rica descrição etnográfica</p><p>do papel de Omulu, divindade do candomblé, no diagnóstico e tratamento da</p><p>doença. No texto, a etnografía revela o potencial da antropologia médica em</p><p>promover o conhecimento crítico do próximo a partir do exame do outro; ao</p><p>descrever as concepções e práticas de doença e cura reunidas em torno de Omulu,</p><p>Caprara põe a vista a ausência de um fundamento humanista na biomedicina.</p><p>Nessa perspectiva, a discussão é fortemente inspirada na tradição hermenêutica</p><p>que na antropologia médica conta com representantes de peso como Good,</p><p>Kleinman e Bibeau.</p><p>Daniela Knauth (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), no capítulo 8,</p><p>explora o potencial crítico da antropologia médica, ao apresentar o ponto de vista</p><p>de instituições ou sujeitos usualmente negligenciados e desconhecidos das disci­</p><p>plinas que estudam e tratam da saúde e doença. A partir de uma perspectiva</p><p>antropológica, Knauth lança um olhar crítico a psicologia, questionando a supos­</p><p>ta universalidade de seus conceitos e abordagens terapêuticas. No seu trabalho</p><p>evidencia-se tanto o papel relativizador da antropologia no encontro com outras</p><p>disciplinas, como a forma por excelência em que este papel é exercido: a etnografía.</p><p>Ao apresentar a visão que mulheres de classe trabalhadora de Porto Alegre,</p><p>diagnosticadas soro-positivas, têm acerca do tratamento psicológico a que se sub¬</p><p>meteram devido a doença e dos conceitos básicos com que trabalham os terapeutas,</p><p>a autora põe a vista limitações sérias da psicologia para cuidar do sofrimento</p><p>dessa camada social. Em sua discussão mostra como as categorias de depressão,</p><p>morte e AIDS, que norteiam a abordagem dos psicólogos, estão associadas no</p><p>imaginário das mulheres estudadas a um conjunto bem distinto de representações</p><p>e práticas.</p><p>O texto seguinte (capítulo 9) é escrito por Mark Cravalho</p><p>de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir a sua particularidade ", o que</p><p>torna os exóticos, os diferentes "acessíveis (...) dissolve sua opacidade". Desta</p><p>forma, o preconceito em relação ao outro, ao diferente, também se dissolve.</p><p>Depreende-se desta discussão sobre a assimilação do exótico pela antropo­</p><p>logia, que a culpabilidade, implícita na ligação entre risco e estilos de comporta­</p><p>mento e embutida no conceito/preconceito de risco epidemiológico, deriva de</p><p>uma elaboração equivocada da noção de cultura por parte da epidemiologia. Um</p><p>aspecto também envolvido com a diferença das visões de doença operadas pela</p><p>epidemiologia e pela antropologia.</p><p>Uma evidência desta questão aparece nos discursos preventivistas de Edu­</p><p>cação em Saúde a partir das evidências epidemiológicas em relação ao hábito de</p><p>fumar - um dos (relativamente poucos) exemplos de eficácia do modelo etiológico</p><p>da epidemiologia aplicada a doenças crônico-degenerativas, no caso do câncer</p><p>de pulmão. Apesar das dificuldades desta disciplina em propor leituras contextuais</p><p>de tais situações, em especial, no que se refere ao estabelecimento de responsabi­</p><p>lidades pela adoção de estilos de vida arriscados. Neste caso, o chamado com­</p><p>portamento de riscc pode estar nitidamente ligado a um dimensionamento sócio-</p><p>cultural eticamente duvidoso, pelo qual determinadas escolhas são encaradas como</p><p>estritamente individuais e refletem modos irresponsáveis de levar a vida (ou de</p><p>se deixar levar pelas tentações veiculadas pela publicidade de uma sociedade de</p><p>consumo).</p><p>Por outro lado, deve ser acrescentado ainda neste aspecto da atribuição do</p><p>risco de adoecer pelos epidemiologistas, que a mencionada abordagem "hori­</p><p>zontal" (Dunn & Janes, 1986) preferida pela epidemiologia em detrimento do</p><p>aprofundamento e da percepção das inter-relações humanas, promove uma su¬</p><p>perficialização imprópria da questão da especificidade dos gêneros. E gênero,</p><p>diga-se, é parte central da apreciação do adoecer humano pela antropologia mé­</p><p>dica (Helman, 1994).</p><p>É o que nos mostra Pinch (1994), em uma abordagem "feminista " da "trans­</p><p>missão vertical" da AIDS, onde esclarece a especificidade da situação da mu­</p><p>lher diante, por exemplo, da possibilidade de transmitir a doença ao feto, ou,</p><p>sendo ou não portadora do vírus, das suas responsabilidades para com a família e</p><p>os filhos quando a doença de algum modo atinge os seus. A sociedade tem im­</p><p>posto à mulher uma série de encargos e papéis sociais específicos que permeiam</p><p>a construção de seu universo simbólico e, na medida em que a AIDS adentra o</p><p>cotidiano, transcendendo os antigos grupos de risco, a posição da mulher tem</p><p>que ser considerada também de modo específico. Com seus valores próprios, sua</p><p>concepção de realidade e sua forma de relacionamento especial com o mundo,</p><p>suas maneiras de negociar a evasão das normas e a adesão aos padrões sociais.</p><p>Coisas, enfim, de importância fundamental para o conhecimento epidemiológico</p><p>da AIDS e para uma visão mais coerente da contribuição social feminina, e que</p><p>podem passar, ou certamente passam despercebidas, quando a epidemiologia</p><p>homogeneiza populações e padroniza comportamentos, omitindo a questão dos</p><p>gêneros, na atribuição dos riscos.</p><p>Neste sentido, no âmbito da epidemiologia, o "homem dos riscos ", bela ela­</p><p>boração teórica de Almeida Filho (1992: 144), seria melhor visto (para além das</p><p>querelas politicamente corretas) como o ser humano dos riscos, homem ou mu­</p><p>lher, e dever-se-ia relevar nesta última construção a presença feminina de forma</p><p>a compreender sua especificidade.</p><p>É evidentemente importante considerar a problemática do "patriarcado"</p><p>que cerca a ciência, e que, no dizer de Capra (1988: 27), "tem influenciado nos­</p><p>sas idéias mais básicas acerca da natureza humana e de nossa relação com o</p><p>universo ". Algo tão presente que "tem sido extremamente difícil de entender por</p><p>ser totalmente preponderante ".</p><p>Uma ilustração significativa desta questão é apresentada por Castro &</p><p>Bronfman (1993: 387, 388) ao apontarem, a partir da leitura de Treichler (1990)</p><p>e Martin (1987), o "discurso patriarcal" que suporta a construção do "saber</p><p>médico ". Os autores mostram como a reprodução humana é encarada nos ma­</p><p>nuais médicos como um fenômeno biológico mecânico e o parto é definido atra­</p><p>vés do ponto de vista da presença do médico que viabiliza a "expulsão " ou "ex­</p><p>tração" do nascituro (aspas e grifos no original). Além disto, a descrição do</p><p>processo menstrual utiliza expressões que sugerem o malogro de uma fecunda­</p><p>ção que não ocorreu, algo que fracassou em seu propósito, ocorrendo a "degene-</p><p>ração" do corpo lúteo, "declínio" dos níveis hormonais, "espasmos" dos vasos</p><p>sangüíneos endometriais, "descarga " de sangue, e, por sua vez, a espermatogênese</p><p>consistiria em um processo "extraordinário", "surpreendente ", de "magníficas"</p><p>dimensões (aspas no original).</p><p>Já no âmbito da epidemiologia; outro sugestivo exemplo desta tendenciosi¬</p><p>dade é apontado por Faerstein (1989) ao considerar a construção de categorias</p><p>relativas às práticas e hábitos supostamente ligados ao câncer genital feminino.</p><p>A partir da revisão de trabalhos que procuram mostrar a associação estatística</p><p>entre câncer cérvico-uterino e "promiscuidade"/"precocidade sexual", o citado</p><p>pesquisador assinala como tais categorias se prestam para interpretações</p><p>preconceituosas em diferentes contextos culturais. O próprio termo "promiscui­</p><p>dade " parece vincular-se mais com modos femininos (e homoeróticos) de lidar</p><p>com a sexualidade. Os homens, como aponta Faerstein, em circunstâncias cor­</p><p>respondentes, apresentariam "sexualidade mais pronunciada" ou "maior ener­</p><p>gia sexual".</p><p>Há pertinência em muitas críticas formuladas pela teoria feminista quanto</p><p>aos possíveis vieses propiciados pela visão patriarcal nas ciências, em geral, e</p><p>nas ciências sociais, em particular. O mito do objetivismo, com suas técnicas</p><p>empiricistas e quantitativas teria levado o modelo positivista nas ciências huma¬</p><p>nas a um paroxismo improfícuo. Torna-se, assim, complexa a discussão episte­</p><p>mológica que, por um lado, vincula idéias de "natureza, corpo, subjetividade,</p><p>domínio privado, sentimentos, emoções e reprodução sob a identidade genérica</p><p>feminina e os conceitos de cultura, mente, objetividade, domínio público, pensa­</p><p>mento, racionalidade e produção sob a identidade genérica masculina " (Castro</p><p>& Bronfman, 1993: 389), e, por outro, atribui aos métodos qualitativos a possibi­</p><p>lidade de trazer outra forma de conhecimento para além das limitações das pro­</p><p>postas quantitativas (referidas estas últimas ao modo mais masculino de abordar</p><p>o real). Tal polarização, se, em certa medida, corre o risco de se mostrar limitada</p><p>como proposta consistente de avanço nas modalidades do fazer ciência, serve</p><p>para a importante função de chamar a atenção para tendenciosidades nas formas</p><p>predominantes de construção de fatos científicos, especialmente no campo da</p><p>saúde.</p><p>Talvez não seja absurdo (apesar da possível reação trocista que tal afirmação</p><p>possa suscitar) cogitar que tenha chegado o momento de pensar nas possíveis</p><p>distorções oriundas das enunciadas característ icas dominantes do projeto</p><p>epidemiológico, consideradas como de gênero masculino - objetividade, contro­</p><p>le, quantificação, racionalidade...</p><p>COMENTÁRIOS FINAIS</p><p>A ciência, sempre se disse, parece embutir um paradoxo: quanto mais se</p><p>conhece, menos se sabe. A evolução do conhecimento humano revelou a com­</p><p>plexidade das coisas. De qualquer modo, nas palavras do biólogo inglês Brian</p><p>Godwin, "não explicamos as coisas, em ciência. Nós nos aproximamos do misté­</p><p>rio" (Lewin, 1994: 47).</p><p>No entanto, é essencial dar-se conta da ambigüidade desta ponderação. Ou</p><p>seja, refletir sobre se é verdade, de fato, que as ciências nos trouxeram mais</p><p>próximos da solução dos grandes mistérios da vida e da existência humana. Por</p><p>um lado, as ciências indiscutivelmente proporcionaram</p><p>explicações importantes</p><p>que eram desconhecidas, e, por outro, as questões da condição humana e do sen­</p><p>tido da existência ainda são problemas, que aparentemente se intensificaram dian­</p><p>te do enfraquecimento das narrativas sustentadoras de matrizes culturais de iden­</p><p>tidade como eram os discursos de caráter religioso. Não há como negar o papel</p><p>das ditas tecnociências na construção deste quadro. Propiciaram condições para</p><p>alterar consideravelmente nossos modos de levar a vida, trazendo, inclusive, no­</p><p>vas configurações a nossas culturas e, por extensão, novas formas de constitui­</p><p>ção de subjetividades e modos de adoecer. A incerteza e a insegurança do indiví­</p><p>duo contemporâneo se manifesta em seu cotidiano e não lhe dá motivos para</p><p>confiar no valor do pensamento científico.</p><p>No que diz respeito à combinação entre a epidemiologia e a antropologia,</p><p>como foi dito, a questão central está nas relações da cultura, objeto antropológico</p><p>por excelência, com o adoecer das populações humanas. Ou, mais exatamente,</p><p>nas relações entre a cultura e o objeto da epidemiologia, definido por Almeida</p><p>Filho (1989: 16, 17; 1992: 50) como "doentes em populações".</p><p>No entanto, é justamente da cultura, do possível ponto de contato entre a</p><p>epidemiologia e a antropologia, que derivam os pontos de afastamento entre as</p><p>disciplinas. Perceber e transpor os obstáculos da dicotomia quantitativo/qualita­</p><p>tivo e das visões diferentes sobre doença/moléstia (a questão disease x illness),</p><p>implica para a epidemiologia em como assimilar a cultura. E esta assimilação,</p><p>este entendimento da cultura, nos conduz, então, à própria essência do projeto</p><p>científico de cada uma das disciplinas.</p><p>A epidemiologia, apesar da natureza de suas bases fundamentais estar em</p><p>parte localizada na medicina social do século XIX, trilhou o caminho do alinha­</p><p>mento quantitativo com as ciências duras, de bases experimentais e estatísticas, e</p><p>linguagem matemática por excelência. E, neste trajeto, opera uma contagem de</p><p>casos suportada pelas classificações clínicas, seguindo uma lógica biomédica.</p><p>Por outro lado, tal não é o projeto da antropologia, ou pelo menos da parte</p><p>dela que está sendo considerada aqui, de sua vertente interpretativa representada</p><p>por Clifford Geertz, que privilegia o universo simbólico na construção da cultu­</p><p>ra. Ainda que uma perspectiva de quantificação faça parte da antropologia e ve­</p><p>nha mesmo penetrando nesta sua corrente interpretativa buscando formas, por</p><p>exemplo, para decodificação de entrevistas, e isto represente um esforço de clas­</p><p>sificação, o projeto essencial da disciplina não é numerar casos de doença e contá-</p><p>los, mas situá-los histórica e culturalmente e interpretá-los. Assimilá-los como</p><p>parte da experiência do mundo vivido.</p><p>Neste sentido, deve ser lembrado o que Canguilhem (1990: 85) diz a respei­</p><p>to da distinção entre o "normal" e o "patológico ". Para este autor, "a quantida­</p><p>de é a qualidade negada, mas não a qualidade suprimida", e, no âmbito do</p><p>conhecimento humano, entre a quantidade e a qualidade, "a oposição se mantém</p><p>no fundo da consciência que decidiu adotar o ponto de vista teórico e métrico ".</p><p>Especificamente no que diz respeito a questões como o racismo e a xenofo­</p><p>bia, Todorov (1992: 121) aponta que "o melhor resultado de um cruzamento de</p><p>culturas é muitas vezes o olhar crítico que volvemos para nós mesmos, e que não</p><p>implica, de forma nenhuma, a glorificação do outro". Certamente esta afirmação</p><p>pode muito bem servir aos epidemiologistas para que assumam uma percepção</p><p>crítica em relação à culpabilidade e ao preconceito que podem envolver a consi­</p><p>deração do risco epidemiológico e sua imbricação com a cultura.</p><p>Como em outras áreas, entre os epidemiologistas existirão sempre os extre­</p><p>mos, aqueles que se embriagam com a exclusividade dos métodos quantitativos e</p><p>os que se entregam ao encantamento de áreas como a sociologia e a antropologia.</p><p>Cer tamente os p r imei ros são os mais n u m e r o s o s . Do m e i o - t e r m o , sem</p><p>pragmatismos que deformem o conhecimento, deve surgir uma epidemiologia</p><p>mais companheira das populações que estuda.</p><p>Coloca-se, portanto, a questão de que interpretar narrativas e discursos, ma­</p><p>nusear símbolos, e explorar aí as relações dos elementos culturais com o adoecer</p><p>das populações, deva ser, certamente, uma tarefa árdua para os epidemiologistas,</p><p>ainda que haja disposição para isto. Ainda que haja a abertura para a interdisci­</p><p>plinaridade apontada no início deste texto, explorar estas relações significa, antes</p><p>de tudo, trabalhar com a singularidade dos símbolos, operar com elementos</p><p>indisciplinados, borrados demais para uma disciplina como a epidemiologia que</p><p>sempre perseguiu a precisão dos números.</p><p>Como aponta Helman (1994: 265), "os fatores culturais, quando identifica­</p><p>dos, não são fáceis de quantificar, e, por isso, são menos atraentes aos epide­</p><p>miologistas médicos e aos estatísticos ". E quando Almeida Filho (1992:36) ima­</p><p>gina o epidemiologista perguntando ao antropólogo: "Será que você pode nos</p><p>dar algumas variáveis sócio-econômicas mensuráveis? "</p><p>Aceitando-se a complexidade das coisas e a necessidade das colaborações</p><p>entre disciplinas deve-se, então, falar de interdisciplinaridade ou considerar uma</p><p>relação de combinação mais simples, mais frouxa, entre a epidemiologia e a an­</p><p>tropologia?</p><p>No entender de Japiassu (1976: 72, 73), no espaço de combinação de disci­</p><p>plinas, existiria uma " multidisciplinar idade ", que evocaria somente uma "justa­</p><p>posição " num trabalho determinado, sem a necessidade de uma atuação coorde­</p><p>nada de equipe. Afirma o autor que:</p><p>"Quando nos situamos no nível do simples multidisciplinar, a so­</p><p>lução de um problema só exige informações tomadas de empréstimo a</p><p>duas ou mais especialidades ou setores do conhecimento, sem que as</p><p>disciplinas levadas a contribuírem por aquela que as utiliza sejam mo­</p><p>dificadas ou enriquecidas ".</p><p>Se optarmos, então, por uma multidisciplinaridade, ao invés de uma inter­</p><p>disciplinaridade, estaremos, certamente, estabelecendo relações intermitentes e</p><p>provisórias, ainda que momentaneamente complementares, onde nenhuma das</p><p>disciplinas reconhece a outra. Há apenas uma utilização mútua onde concepções</p><p>diversas de mundo e realidades podem muito bem conviver sem grandes arra­</p><p>nhões em suas estruturas específicas. Algo bem ao jeito da epidemiologia, em</p><p>sua tenacidade positivista que despreza a essência e os conflitos, o poder trans­</p><p>formador do confronto das idéias e da negociação científica.</p><p>De outra forma, se, da parte da epidemiologia, domínio mais próximo des­</p><p>te texto, optarmos pela interdisciplinaridade, estaremos nos colocando novos</p><p>problemas e buscando novas soluções, surgidos justamente do diálogo interdis-</p><p>ciplinar.</p><p>Assim, colocar a discussão em termos de definições (ou mesmo de transfe­</p><p>rências) metodológicas - qualitativas x quantitativas, é empobrecer a questão. Se</p><p>a pesquisa em Saúde Coletiva deve assumir uma preocupação com as interações</p><p>mente/corpo/sociedade responsáveis pelo adoecimento das populações, não há</p><p>razão para estabelecer uma primazia de métodos em detrimento de outros. Os</p><p>objetos de estudo neste campo podem demandar técnicas e métodos específicos</p><p>para os quais se mostram mais responsivos e apropriados. É preciso ter claro que,</p><p>muitas vezes, as discussões metodológicas encobrem lutas de poder e controle</p><p>corporativo (Baum, 1995).</p><p>Portanto, enxergar outras representações de saúde e doença, admiti-las na</p><p>coleta de dados, construir novas taxonomias incorporando a interpretação das</p><p>narrativas, situá-las no contexto histórico social e cultural, reconhecer os rituais,</p><p>perceber a diversidade dos gêneros e grupos sociais no âmbito da "singularidade</p><p>do adoecer humano" (Castiel, 1994) e considerá-la no coletivo das populações,</p><p>devem ser algumas das questões a serem pensadas.</p><p>Devemos harmonizar os equipamentos mentais, redimensionar valores no</p><p>âmbito científico sem, evidentemente, prejuízo dos princípios humanitários que</p><p>devem reger toda a ciência. Identificar preconceitos e caminhar na exploração de</p><p>outras áreas significa admitir uma ética que respeite as minorias étnicas e sociais</p><p>e encare com seriedade os valores ecológicos.</p><p>Obviamente, o território interdisciplinar tem limites sutis, mas que somente</p><p>podem ser transpostos se visualizados. Neste sentido, a interdisciplinaridade se</p><p>alimenta de si mesma, de sua própria prática, e se constrói sobre seus próprios</p><p>passos.</p><p>Temos, então, que penetrar no desconhecido e há nisso o perigo e o medo da</p><p>inutilização pelo exercício de um enciclopedismo inconseqüente, redundante,</p><p>tautológico. Algo que só pode ser evitado através de uma prática orientada para</p><p>objetivos definidos, apreendidos, dimensionados e reconhecidos pelos pesquisa­</p><p>dores envolvidos, e forjados na absoluta necessidade de se conhecer e não na</p><p>mera predisposição de se movimentar aleatoriamente na suposição enganadora</p><p>de assim nos libertarmos das amarras disciplinares impostas pela ciência.</p><p>Empresa difícil? Certamente muito, é fato. Mas, um projeto utópico? Quem</p><p>sabe? Saberes e utopias são construções humanas, se revelam ao sabor dos tem­</p><p>pos, com o caminhar das sociedades. Para Dunn & Janes (1986: 21), a "comple­</p><p>xidade dos determinantes e o conhecimento da existência dos fatores subjetivos</p><p>têm conduzido alguns epidemiologistas pioneiros (...) para além do simples, do</p><p>mundo não-complicado da antiquada epidemiologia". A "antiquada"</p><p>epidemiologia , ao que poderia ser acrescentado: posi t ivista, empiricista,</p><p>homogeneizadora e pretensamente neutra. E, assim, no âmbito do que os autores</p><p>referidos definem como domínio de uma "ecologia médica " estariam abertas as</p><p>portas aos antropólogos.</p><p>Este deve ser realmente um caminho promissor para o trabalho interdiscipli¬</p><p>nar entre epidemiologistas e antropólogos, pois, ao pensar sobre a escolha de um</p><p>futuro para a epidemiologia, é na construção de uma "eco-epidemiologia" que</p><p>Susser (1996a, 1996b) enxerga o reconhecimento da complexidade que envolve</p><p>o adoecer das coletividades humanas e a ultrapassagem do "paradigma da caixa</p><p>preta", característico da epidemiologia dos fatores de risco que surgiu com o</p><p>estudo das doenças crônicas, em meados do século XX. Para Skrabanek (1994),</p><p>na esperança de revelar causas desconhecidas de doenças, a epidemiologia da</p><p>caixa preta associa estatisticamente exposições a fatores de risco com ocorrên­</p><p>cia de doenças sem que importe neste contexto qualquer formulação de hipótese</p><p>ou plausibilidade biológica, transformando, então, através de um exercício de</p><p>prestidigitação, achados fortuitos em relações causais. Desta forma, acrescenta­</p><p>mos, na epidemiologia dos fatores de risco, do paradigma da caixa preta, o estu­</p><p>do do adoecer das populações humanas se dá numa perspectiva de evidente</p><p>descontextualização histórica, social e cultural absolutamente inadequada para o</p><p>trabalho interdisciplinar que buscamos. Pelo que, este é um paradigma que deve</p><p>ser in(ter)disciplinarmente transgredido (com o rigor da indisciplina) numa atua­</p><p>ção conjunta e conseqüente de epidemiologistas e antropólogos.</p><p>De qualquer modo, sejam quais forem os locais de encontro, ou mais clara­</p><p>mente, de trocas e negociação entre epidemiologistas e antropólogos, admitir</p><p>como científica a participação na interpretação da aventura humana é um dilema</p><p>que se apresenta hoje à epidemiologia.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ACHESON, R. M. (1975). Epidemiology - uses and method. In: A handbook of community</p><p>medicine (A. M. Nelson, ed.). Bristol: John Wiley and Sons apud DEVER, G. E.</p><p>A., 1988. A epidemiologia na administração dos serviços de saúde. São Paulo: Li­</p><p>vraria Pioneira e Editora.</p><p>ALMEIDA-FILHO, N. (1989). Epidemiologia sem números - uma introdução crítica à</p><p>ciência epidemiológica. Rio de Janeiro: Campus/Abrasco.</p><p>ALMEIDA-FILHO., N. (1992). 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Ver Moles (1995).</p><p>3 Perdoem-nos o chiste: parece ficar pairando uma atmosfera de justificação da firmeza/rigor</p><p>das ciências humanas e sociais ante os supostos sobrolhos de crítica dos pesquisadores "duros", a</p><p>ponto de imaginarmos uma intervenção picaresca: são moles ou querem mais?!)</p><p>4 Aproveitamos, aqui, a idéia de "perdição" expressa pelo filósofo Clement Rosset, referin­</p><p>do-se ao estado onde nada é situável, onde não há referenciais qualitativos ou quantitativos que</p><p>definam a priori categorias e escalas de ordenação e mensuração. Apenas intuições, sensações,</p><p>indícios, aproximações. Ver Rosset (1989).</p><p>5 Para isto ver número temático a este respeito da Theoretical Medicine v. 14, n.4, 1993.</p><p>ANTROPOLOGIA MEDICA E</p><p>EPIDEMIOLOGIA. PROCESSO DE</p><p>CONVERGÊNCIA OU PROCESSO</p><p>DE MEDICALIZAÇÃO?</p><p>Eduardo L. Menéndez</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A Antropologia Social e as disciplinas médicas organizadas em torno da</p><p>Saúde Pública, e em especial a Antropologia Médica e a Epidemiologia, desen­</p><p>volveram perspectivas de descrição e análise do processo saúde/enfermidade/</p><p>atenção, que apresentam características simultaneamente complementares e di­</p><p>vergentes 1 , que tratarei de analisar neste trabalho. Nossa análise das relações</p><p>entre ambas disciplinas parte do suposto de que ocorreu um processo de conver­</p><p>gência entre as mesmas, ao mesmo tempo em que determinados fatores limitam a</p><p>possibilidade, de complementação em termos interdisciplinares. O impulso dado</p><p>às atividades de Atenção Primária desde finais dos anos sessenta, e especialmen­</p><p>te após a Conferência de Alma Ata; as propostas de participação social, de utili­</p><p>zação de estratégias de atenção baseadas no saber popular ou de formação de</p><p>sistemas locais de saúde (SILOS), assim como a recuperação de ações baseadas</p><p>em redes sociais, grupos de apoio e auto-cuidado, favoreceram esta convergência</p><p>pelo menos a nível declarativo. Este processo foi, além disso, favorecido pelo</p><p>fato de terem passado para primeiro plano as doenças crônico-degenerativas, as</p><p>"violências" e as dependências, assim como pelo especial desenvolvimento da</p><p>AIDS que supuseram entre outras coisas o "descobrimento" das aproximações</p><p>qualitativas e da significação do saber dos conjuntos sociais para o desenvolvi­</p><p>mento de grupos de auto-ajuda e de outras estratégias de ação comunitária.</p><p>Por outro lado o reconhecimento da complexidade e de problemas conside­</p><p>rados prioritários na América Latina, como o controle da natalidade e, a desnutri­</p><p>ção ou a mortalidade e infantil, conduziu a que fosse proposta uma aproximação</p><p>articulada entre ambas perspectivas, para favorecer a construção de um enfoque</p><p>realmente estratégico. Mosley em 1988 assinala que a multiplicidade e variedade</p><p>de fatores que incidem sobre a mortalidade infantil não podem ser reduzidos a</p><p>soma de grande quantidade e de variáveis que estão complicando a análise e</p><p>limitando a capacidade e explicativa: "Para evitar isso, há dois passos que, em</p><p>geral, deverão ser dados se planificar a investigação e desenhar os estudos: reali­</p><p>zar estudos antropológicos profundos e em pequena escala, como propõe Ware</p><p>(1984) para identificar as variáveis críticas de interesse e sua interpretação, e</p><p>especificar com cuidado as relações hipotéticas entre as variáveis, como discu­</p><p>tem detalhadamente Palloni (1981) e Shultz (1984)". (Mosley 1988:323).</p><p>Porém este processo de convergência ocorreu de forma limitada e conflitiva</p><p>por razões de tipo teórico-metodológicas, institucionais e profissionais que espe­</p><p>ramos desenvolver através deste trabalho.</p><p>UNIDADES DE ANÁLISE, CAUSALIDADE E PREVENÇÃO</p><p>A análise de determinadas características de ambas disciplinas evidencia a</p><p>similaridade e de suas aproximações metodológicas, pelo menos em um nível</p><p>manifesto. Assim podemos observar que as mesmas tratam com algum tipo de</p><p>conjunto social, o qual pode ser pensado em termos de grupos domésticos, gru­</p><p>pos ocupacionais, grupos de idade, estratos sociais, etc. Para elas a unidade e</p><p>deve ser algum tipo de conjunto social.</p><p>A t u a l m e n t e as cor ren</p><p>tes dominan t e s na An t ropo log ia Méd ica e na</p><p>Epidemiologia reconhecem a multicausalidade da maioria dos problemas de saú­</p><p>de, e questionam que a explicação causal dos problemas específicos seja coloca­</p><p>da em um só fator. A maneira de manejar a multicausalidade pode variar segundo</p><p>o problema e/ou marco metodológico utilizado, e assim, enquanto que algumas</p><p>investigações lidam com uma notória diversidade e dispersa de fatores explicativos,</p><p>outras tratam de encontrar um efeito estrutural que organize os diversos fatores</p><p>incluídos.</p><p>As duas disciplinas supõem a existência de algum tipo de desenvolvimento</p><p>ou evolução do processo saúde/enfermidade/atenção (doravante processo s/e/a)</p><p>específico, que no caso da Epidemiologia pode referir-se ao modelo da História</p><p>Natural da Enfermidade e no caso da Antropologia à História Social do Sofri­</p><p>mento/Enfermidade, quer dizer, à proposta construcionista que considera que todo</p><p>padecimento constitui um processo social e histórico que necessita ser reconstruído</p><p>para que possam ser compreendidos os seus significados atuais não só para a</p><p>população senão também para a equipe de saúde. Além das possíveis diferenças,</p><p>é comum o entendimento da enfermidade e do cuidado como processos.</p><p>Um quarto ponto de convergência, refere-se ao fato de que a Antropologia e</p><p>a Epidemiologia reconhecem que as condições de vida - sejam elas denominadas</p><p>formas de vida da classe trabalhadora, subcultura adolescente ou estilo de vida do</p><p>fumante - têm a ver com a causalidade, desenvolvimento, controle e/ou solução</p><p>dos problemas de saúde. O conceito estilo de vida é aquele que parece ter tido</p><p>maior acolhida os epidemiólogos, e vem a ser considerado como parte constitutiva</p><p>de toda uma gama de doenças crônicas e de determinadas "violências".</p><p>Por último, digamos que ambas disciplinas tendem a propor uma concepção</p><p>preventivista da doença, na qual se articulam diferentes dimensões da realidade,</p><p>com o objetivo de limitar a extensão e gravidade dos danos à saúde.</p><p>Poderíamos seguir enumerando outros aspectos complementares considera­</p><p>dos significativos, porém o importante a notar é que com respeito a cada um</p><p>destes pontos de acordo, podemos detectar diferentes graus de discrepância que</p><p>podem chegar ao antagonismo entre as propostas da Antropologia Médica e da</p><p>Epidemiologia.</p><p>Se revemos cada um dos aspectos apresentados, podemos observar que em­</p><p>bora ambas disciplinas tratem com conjuntos sociais, a epidemiologia muito</p><p>freqüentemente descreve seus conjuntos em termos de agregados estatísticos,</p><p>enquanto que a Antropologia trabalha preferencialmente com "grupos naturais".</p><p>Embora não desenvolveremos este ponto, o considero decisivo no que diz respei­</p><p>to à construção e significado do dado referido ao processo s/e/a, uma vez que</p><p>para o enfoque antropológico a desagregação dos conjuntos sociais em indiví­</p><p>duos supõe a violentação da realidade social que ditos sujeitos constituem. Desa­</p><p>gregar os conjuntos sociais em indivíduos selecionados aleatoriamente, supõe</p><p>não assumir que ditos indivíduos se definem a partir das relações estabelecidas</p><p>dentro de seus grupos e que, além disso, a maioria de ditas relações não são</p><p>aleatórias.</p><p>A desagregação dos conjuntos sociais em indivíduos, pertence a mesma con­</p><p>cepção de par t i r a r ea l idade socia l em múl t ip las va r i áve i s , c a r e c e n d o</p><p>freqüentemente a ambos conjuntos desagregados uma proposta teórica de articu­</p><p>lação e inter-relação. Esta maneira de tratar metodologicamente a realidade con­</p><p>duz freqüentemente a produção de um tipo de informação que não corresponde</p><p>aquilo que os conjuntos sociais produzem e reproduzem com respeito ao proces­</p><p>so s/e/a.</p><p>Por outro lado, ainda quando as duas t rabalham com uma concepção</p><p>multicausal, a epidemiologia dominante situa o eixo da causalidade no biológico</p><p>ou no bioecológico, enquanto a Antropologia Médica o situa em fatores de tipo</p><p>cultural ou sócio-econômico 2 . Mais ainda, deve-se sublinhar que a tendência a</p><p>buscar uma causalidade única e específica segue dominando a abordagem</p><p>epidemiológica, haja visto a importância dada aos padec imentos crônico/</p><p>degenerativos, as violências e as dependências (ver Buck 1988; Nájera 1988;</p><p>Nations 1986; Renaud 1992; Terris 1988).</p><p>A epidemiologia não só tende a pensar as causas da enfermidade em termos</p><p>de uma causalidade bioecológica ou exclusivamente biológica, senão que se ca­</p><p>racteriza pelo domínio de uma aproximação a-histórica no que diz respeito ao</p><p>processo saúde/enfermidade/atenção. O uso dominante da análise de curta dura­</p><p>ção histórica não é um fato casual ou baseado em razões exclusivamente técni­</p><p>cas, senão que obedece a uma perspectiva metodológica que não inclui a signifi¬</p><p>cação da dimensão diacrônica. A série histórica de cinco ou dez anos expressa o</p><p>peso do biológico entendido como uma constante e a série histórica de longa</p><p>duração não aparece como necessária para compreender o desenvolvimento do</p><p>padecimento nem as alternativas de solução, salvo para algumas correntes preo­</p><p>cupadas com a história do processo s/e/a (ver revista Dynamis 1980-1995).</p><p>Embora a epidemiologia trabalhe com séries históricas curtas por razões</p><p>compreensíveis, dada a necessidade de encontrar soluções ou pelo menos expli­</p><p>cações a problemas imediatos como a emergência de episódios agudos ("brotes")</p><p>ou mesmo devido a desconfiança com respeito à validez dos dados epidemiológi­</p><p>cos existentes, não é apenas por estas ou outras razões similares que não utiliza a</p><p>dimensão histórica.</p><p>As ciências antropológicas e sociais têm proposto uma concepção constru¬</p><p>cionista da doença, das estratégias de atenção, mas também da vida cotidiana</p><p>onde se processa o padecimento, o que, entre outras razões, a têm conduzido</p><p>observar historicamente o papel da biomedicina com respeito a toda uma diversi­</p><p>dade de problemas. Se bem que o processo de medicalização e, em especial, o da</p><p>"psiquiatrização" têm sido os mais investigados, esta abordagem tem sido aplica­</p><p>da a temas tão diversos como o auto-cuidado ou o processo de alcoolização. Para</p><p>além dos tipos de interpretações específicas resultantes dessas investigações, as</p><p>mesmas têm posto em relevo o fato de que ditos processos só podem ser realmen­</p><p>te compreendidos a partir de uma perspectiva diacrônica construcionista e têm</p><p>evidenciado a significação paradoxal da biomedicina tanto na construção técnica</p><p>da enfermidade (disease) como também na construção social do padecimento</p><p>(illness). Demonstraram, por exemplo, que o saber médico e especialmente o</p><p>próprio profissional, é uma das principais causas da automedicação com fármacos</p><p>(ver Conrad e Schneider 1980; Douglas, 1970; Gaines, 1992; Lock e Gordon,</p><p>1988; Menéndez, 1990a, 1990c; Menéndez e Di Pardo, 1996a; Morgan, 1983;</p><p>Scott, 1970; Soe. Sc. Med., 1992) 3 . No caso do conceito estilo de vida observa­</p><p>mos que, enquanto a Antropologia trata de manejá-lo como um conceito holístico,</p><p>a Epidemiologia tende a reduzi-lo a comportamento de risco, erodindo a concep­</p><p>ção teórico-metodológica a partir da qual foi proposto. Este conceito se consti­</p><p>tuiu a partir do marxismo, da abordagem compreensiva weberiana, da psicanáli­</p><p>se e da antropologia cultural norte-americana (ver Coreil et ai, 1985), ainda que</p><p>se deva reconhecer que as concepções teóricas que mais influíram sobre a formu­</p><p>lação e desenvolvimento deste conceito são as historicistas a lemãs 4 . O objetivo</p><p>era produzir um conceito que, a partir das dimensões materiais e simbólicas, pos­</p><p>sibilitasse a articulação entre o nível macro (estrutura social) e o nível dos grupos</p><p>intermediários expressos através de sujeitos cujo comportamento se caracteriza­</p><p>va por um determinado estilo exercitado na vida cotidiana pessoal e coletiva. Era</p><p>um conceito holístico, j á que através do sujeito/grupo pretendia observar-se a</p><p>globalidade da cultura expressada através de estilos particulares.</p><p>As necessidades</p><p>explicativas/aplicativas da epidemiologia despojaram este</p><p>conceito de sua articulação material/ideológica em termos holísticos e reduziram</p><p>sua aplicação ao risco subjetivo ou grupai específico. Segundo uma perspectiva</p><p>antropológica o hábito de fumar não é um risco separável das condições globais</p><p>em que o sujeito produz sua vida; é o contexto global que está em jogo através do</p><p>estilo de vida. Isolar o risco de beber, de fumar ou de comer determinados ali­</p><p>mentos pode ser eficaz para intervir a nível de condutas individuais, mas não só</p><p>anula o efeito compreensivo do problema, senão que reduz a eficácia da interven­</p><p>ção.</p><p>As investigações epidemiológicas britânicas evidenciaram que os fumantes</p><p>homens de classe baixa são os que têm maior risco de morrer e os que têm maio­</p><p>res dificuldades de abandonar o hábito de fumar, comparado com os homens dos</p><p>estratos médio e alto. Seria o pertencimento a classe e não o estilo de vida o</p><p>condicionante de dito hábito. Recuperando a significação original deste concei­</p><p>to, o estilo depende dos condicionantes globais que, neste caso, se referem a</p><p>situação e relações de classe. Para a classe trabalhadora britânica, fumar, beber</p><p>cerveja especialmente preta, ter relações físicas violentas, conviver socialmente</p><p>no "pub" (bar), e t c , conformam um estilo de pertencimento de classe e de dife­</p><p>renciação de classe que é o que fundamentaria a persistência de seu hábito</p><p>tabagista. Estes "hábitos" 5 expressam a maneira de estar no mundo, a identidade</p><p>cultural e a diferenciação social. No que diz respeito a prevenção existem várias</p><p>diferenças, e algumas das mais significativas se organizam em torno do uso das</p><p>representações e práticas culturais como mecanismos de prevenção. Enquanto a</p><p>Epidemiologia e o sanitarismo em geral se caracterizam pelo escasso uso das</p><p>"variáveis" socioculturais, a socioantropologia as considera como substantivas.</p><p>Mais ainda, a perspectiva médica só vê as representações e práticas da população</p><p>como fatores que incidem negativamente sobre sua saúde; as percebem como um</p><p>saber basicamente a modificar. Além disso, esta perspectiva considera explícita</p><p>ou implicitamente que a população não usa critérios de prevenção.</p><p>Sem negar totalmente estas interpretações, o primeiro a recuperar é que todo</p><p>grupo social independente de seu nível de educação formal, gera e utiliza critérios</p><p>de prevenção frente aos padecimentos que, real ou imaginariamente, afetam sua</p><p>saúde na vida cotidiana. Não existem grupos que careçam destes saberes preven­</p><p>tivos, porque os mesmos são estruturais a toda cultura, j á que são decisivos para</p><p>a produção e reprodução da mesma (Menéndez 1994).</p><p>A maioria destes critérios preventivos são socioculturais e o ponto central</p><p>para essa discussão não é tanto considerá-los como comportamentos equivoca­</p><p>dos ou corretos, senão assumir que os grupos sociais produzem critérios e práti­</p><p>cas de prevenção, sejam ou não errôneos.</p><p>Reconhecer isto suporia uma mudança radical na perspectiva sanitarista, pois</p><p>esta assumiria que os conjuntos sociais não são reacionárias a prevenção na me¬</p><p>dida em que a produzem e utilizam. Como conseqüência, um dos principais obje­</p><p>tivos médicos passaria a ser a descrição e análise dos significados dos saberes 6</p><p>preventivos dos grupos sociais para estabelecer a possibilidade de aplicar ações</p><p>preventivas a partir das representações e práticas da própria população.</p><p>DIFERENCIAÇÕES E DISTANCIAMENTOS:</p><p>A APROPRIAÇÃO DE CONCEITOS</p><p>Agora bem, as características assinaladas aparecem condicionadas por toda</p><p>uma série de processos que vão desde o metodológico ao institucional, e dos</p><p>quais só comentaremos aqueles que facilitem interpretar as divergências.</p><p>Em sua aproximação ao processo s/e/a, a Antropologia parte de uma con­</p><p>cepção unilateralmente sociogênica. A quase totalidade das tendências antropo­</p><p>lógicas são sociogênicas desde o marxismo até o interacionismo simbólico, pas­</p><p>sando pelo culturalismo integrativo, o construcionismo ou o estruturalismo. É em</p><p>função deste suposto comum que todas as tendências propõem que o nível de</p><p>análise mais estratégico para explicar o processo s/e/a é o que corresponde ao</p><p>nível socioeconômico ou ao sociocultural e não ao nível biológico. Isto adquire</p><p>características radicais em todas as tendências salvo a ecologia cultural e o mate­</p><p>rialismo mecanicista, a última das quais tem escassos representantes na Antropo­</p><p>logia Médica.</p><p>No que diz respeito ao processo s/e/a, a Epidemiologia parte do patológico,</p><p>quer dizer, da enfermidade (disease) entendida como problema médico, enquan­</p><p>to a Antropologia parte do padecimento (illness) como processo sociocultural e</p><p>econômico-político que inclui o fenômeno considerado patológico. Algumas cor­</p><p>rentes teóricas antropológicas operam inclusive com uma forte tendência a</p><p>despatologizar ou reduzir o patológico ao processo social "normal". Esta tendên­</p><p>cia foi criticada por sanitaristas que sustentam — e muitas vezes acertadamente</p><p>— que o relativismo antropológico e a ênfase na cultura como "verdade" condu­</p><p>zem a reduzir a significação dos processos patológicos. Não obstante, o que de­</p><p>vemos ressaltar é que, enquanto a Epidemiologia coloca seu eixo de análise no</p><p>processo patológico, a Antropologia Médica o situa na estrutura e processo</p><p>socioculturais .</p><p>Nos últimos anos temos investigado o problema do "alcoolismo" no México</p><p>e propusemos como conceito central o "processo de alcoolização", ao qual reme­</p><p>temos os conceitos de "alcoolismo", "alcóolico" e "dependência". O processo de</p><p>alcoolização inclui todos aqueles processos sociais considerados como decisivos</p><p>na estruturação do alcoolismo como fenômeno patológico, normal e coletivo e,</p><p>como conseqüência, remetemos a ele não só os conceitos biomédicos assinala­</p><p>dos, senão também os "riscos" que afetam as condutas individuais (ver Menéndez</p><p>1990a; Menéndez e Di Pardo, 1996a).</p><p>Já em 1943 Horton propunha que para um antropólogo interessado no pro­</p><p>blema do alcoolismo, tinha tanta significação estudar os alcóolicos crônicos ou</p><p>os bebedores sociais como a população não bebedora, dado que é através das</p><p>representações e práticas dos diferentes conjuntos sociais que podemos obter uma</p><p>explicação/interpretação do fenômeno em termos da estrutura sociocultural e não</p><p>só do fenômeno patológico em si. Ainda mais, o consumo "patológico" e suas</p><p>"conseqüências" se explicariam não só pelos sujeitos alcoolizados, senão pelo</p><p>conjunto de atores implicados no sistema social (ver Horton 1991(1943)).</p><p>Agora bem, existe um ponto de convergência que simultaneamente se cons­</p><p>titui em um dos principais pontos de antagonismo potencial assim como de ex­</p><p>pressão do processo de medicalização. Nos referimos à produção e uso de con­</p><p>ceitos por parte de ambas disciplinas.</p><p>Uma revisão, inclusive superficial, dos conceitos que são utilizados pela</p><p>Epidemiologia, a Saúde Pública ou a Medicina Social permite constatar o óbvio:</p><p>que grande parte de seus conceitos básicos foram nomeados e utilizados previa­</p><p>mente pelas Ciências Sociais e Antropológicas. Os conceitos de necessidades, de</p><p>comunidade/organização da comunidade, desenvolvimento comunitário, de gru­</p><p>po e ciclo doméstico, de participação social, de classe social/estrato social/níveis</p><p>sócio-econômicos/pobreza, de redes sociais, de níveis educacionais, de ocupa­</p><p>ção/trabalho/processos laborais/níveis ocupacionais, de sexo/gênero, de estilo de</p><p>vida, e estratégias de sobrevivência/estratégias de vida, e t c , foram formulados,</p><p>utilizados, modificados e inclusive abandonados pelas Ciências Antropológicas</p><p>e Sociais antes que fossem apropriados ou reinventados pelas Ciências da Saúde.</p><p>Isso quer dizer que estes conceitos são produto de um processo teórico e</p><p>metodológico, do qual a maioria dos epidemiólogos parece não ter muita infor­</p><p>mação. No que diz respeito a esse ponto é preciso ressaltar que todos estes con­</p><p>ceitos se referem a teorias específicas</p><p>e que, pelo menos uma parte deles (neces­</p><p>sidades, comunidade, redes sociais, estilo de vida) foram desenvolvidos por ten­</p><p>dências que utilizavam preferencialmente técnicas qualitativas.</p><p>No que toca o uso de conceitos, pelo menos em alguns países da América</p><p>Latina, ocorre algo interessante já que conceitos como medicalização, controle</p><p>social e cultural, a relação entre o cultural e o biológico ou a articulação entre o</p><p>normal e o patológico, vêm a ser utilizados por uma parte dos que trabalham ao</p><p>inter ior do c a m p o da s aúde c o m o t e r m o s e l a b o r a d o s por f i lósofos ou</p><p>epistemólogos, quando uma parte dos mesmos foram cunhados e aplicados inici­</p><p>almente por antropólogos e sociólogos. Assim na América Latina numerosos sa¬</p><p>nitaristas utilizam estes conceitos a partir da obra de Foucault ou de Canguilhen</p><p>ignorando a massa de investigação empírica e de elaboração teórica produzida</p><p>desde a década de 1920 pelas ciências sociais e antropológicas que trabalharam a</p><p>fundo alguns destes conceitos, e que possivelmente seria de maior utilidade a</p><p>eles, sanitaristas, que aqueles formulados por ditos filósofos franceses.</p><p>O ponto assinalado acima não implica negar a importância das contribuições</p><p>de Foucault ou de Canguilhen, senão recuperar a massa de material socioantro¬</p><p>pológico produzida em sua maioria a partir de "trabalho de campo". É preciso</p><p>esclarecer também que não recuperamos a importância de toda essa produção</p><p>antropológica, apenas constatamos sua existência e observamos que a mesma</p><p>deveria ser conhecida e avaliada em sua significação. Se os sanitaristas e clínicos</p><p>e por suposto antropólogos que recuperam os marcos interpretativos, conheces­</p><p>sem mais a fundo não só um de seus referentes mais evidentes (me refiro a Geertz),</p><p>mas a produção antropológica norte-americana, britânica, canadense, alemã, ita­</p><p>liana e francesa gerada entre 1920 e 1960, poderiam observar que o que fizeram</p><p>as ditas correntes interpretativas atuais foi aprofundar um campo que já havia</p><p>gerado notáveis contribuições atualmente esquecidas ou negadas.</p><p>A falta de reconhecimento de que estes e outros conceitos que são atualmen­</p><p>te utilizados pelas Ciências da Saúde têm uma história conceituai expressa de</p><p>forma quase paradigmática não só o desconhecimento que ditas ciências têm da</p><p>produção antropológica, senão também a-historicidade das disciplinas advindas,</p><p>em termos metodológicos, do Modelo Médico Hegemônico.</p><p>Porém, e isso é o que me interessa sublinhar, dito desconhecimento tem con­</p><p>seqüências negativas de tipo muito diverso no trabalho epidemiológico. Conduz,</p><p>por um lado, a "redescubrir o óbvio" de tempo em tempo, o que significa perda</p><p>de tempo, desperdício de recursos, usos conceituais incorretos em termos técni­</p><p>cos, etc. Não saber como foram produzidos e, sobretudo, aplicados os conceitos</p><p>implica ignorar a capacidade que estes tiveram de explicar e solucionar os pro­</p><p>blemas levantados. Implica reduzir a capacidade de discriminar se o problema</p><p>reside no conceito ou no seu uso 7 .Conceitos que foram ou estão sendo utilizados</p><p>por sanitaristas - e me refiro a conceitos como necessidade, comunidade, partici­</p><p>pação social ou sexo/gênero - são conceitos que têm uma larga ou curta história,</p><p>não só "teórica", mas de investigação aplicada na América Latina. Mais ainda,</p><p>alguns destes conceitos se difundiram de forma notável, expressando não só modas</p><p>circunstanciais mas estimulações teórico/práticas e financeiras diretas ou indire­</p><p>tas, que freqüentemente acentuaram a tendência a-histórica assinalada. Durante</p><p>anos o conceito de gênero se manteve nos redutos de sociólogas, historiadoras e</p><p>ativistas feministas, para irromper na América Latina nos anos oitenta e noventa</p><p>através dos estudos sobre sexualidade, planificação familiar ou saúde reprodutiva.</p><p>Uma parte destas investigações, que têm como um de seus eixos o conceito de</p><p>gênero, tem despojado dito conceito não só de sua potencialidade analítica mas</p><p>de seus objetivos de impugnação, dado o processo de produção de conhecimento</p><p>ao interior do qual está sendo incluído.</p><p>Na nossa perspectiva, o uso de conceitos está referido, de forma consciente</p><p>ou não, a teorias (e, logo, a "teóricos") que os produziram dentro de um determi­</p><p>nado marco referencial, o que pode implicar discrepância, complementaridade</p><p>ou antagonismo com o forma pela qual outros marcos teóricos usam o mesmo</p><p>conceito. Os conceitos são designações provisórias que, pelo menos em Antro­</p><p>pologia, não são "neutros", senão que se referem a determinadas tendências teó­</p><p>ricas. Esta contextualização parece estar ausente de muita produção epidemiológica</p><p>que inclusive produz "teorias" explicativas nas quais estes referentes teóricos são</p><p>omitidos.</p><p>A penúltima destas "teorias" é aquela denominada "transição epidemiológi­</p><p>ca". Como todos sabemos, esta foi proposta nos EUA em princípios da década de</p><p>70 e foi aplicada por autores latino-americanos durante a segunda parte da déca­</p><p>da de 80. O que me interessa sublinhar a esse respeito é que o conceito de "tran­</p><p>sição epidemiológica" - saibam ou não aqueles que fazem uso dele - está rela­</p><p>cionado com uma proposta evolucionista/desenvolvimentista da sociedade, for­</p><p>mulada geralmente em termos tipológicos e que se sustenta na chamada teoria da</p><p>modernização. Esta teoria gozou de grande difusão nas décadas de 1950 e 1960,</p><p>e teve como alguns de seus principais exponentes sociólogos e antropólogos lati­</p><p>no-americanos. Esta teoria foi criticada durante os anos sessenta e entrou em</p><p>desuso a finais de dita década e durante os setenta. A discussão teórica sobre a</p><p>"transição" que, por outro lado, emerge da década de 3 0 8 , não aparece presente</p><p>na maioria dos que utilizam esta "teoria" na América Latina. Utilizam-na a partir</p><p>de dados empíricos, manejados de determinada maneira, como se dito conceito</p><p>não estivesse referido a concepções teóricas que, como se demonstrou a seu tem­</p><p>po no caso da modernização, implicava assumir determinadas concepções ideo­</p><p>lógicas com respeito ao "desenvolvimento" modernizador.</p><p>Esta recuperação atual tem a ver não só com uma aproximação científica,</p><p>senão também com o desenvolvimento das propostas econômico-políticas atual­</p><p>mente dominantes em grande parte dos países latino-americanos, dado que dita</p><p>teoria da transição se articula com as propostas neoliberais e neoconservadoras,</p><p>da mesma forma que sua antecessora, a "teoria da transição demográfica", se</p><p>articulava ideologicamente com as concepções "desenvolvimentistas".</p><p>A proposta da "transição epidemiológica" se baseia em informação que in­</p><p>dicaria uma determinada tendência histórica dos danos à saúde e dos perfis</p><p>epidemiológicos. Este conceito teria uma base descritiva e não teórica; porém o</p><p>importante a recuperar é que, como vimos, dito conceito se refere a "teorias" que</p><p>foram analisadas enquanto tal, demostrando-se não só sua falta de capacidade</p><p>explicativa, senão também sua clara afiliação ideológica 9 . Considero que este</p><p>último ponto que acabamos de assinalar merece uma revisão do que se entende</p><p>por "descritivo" em Antropologia Social e em Epidemiologia. Para isso não só</p><p>devemos assumir que grande parte da Epidemiologia que se realiza é de tipo</p><p>descritivo, senão que uma das características básicas do trabalho antropológico é</p><p>produzir "etnografía", quer dizer, descrições. Assumindo, conseqüentemente, que</p><p>a descrição, que a produção do "dado" aparece como prioritária para ambas dis¬</p><p>ciplinas, a questão é precisar o que cada uma entende por produção do "dado". E</p><p>aqui residem algumas das principais divergências.</p><p>Quando lemos e analisamos trabalhos de Saúde Pública ou de epidemiologia</p><p>clínica que fazem referências ou propõem e/ou incluem em suas investigações</p><p>aspectos tais como estratégias de sobrevivência, ciclo de vida dos grupos domés­</p><p>ticos, processos ideológico/culturais, estilos de vida ou práticas de autocuidado e</p><p>observamos</p><p>os dados empíricos que nos apresentam e analisam, torna-se eviden­</p><p>te que há uma concepção diferencial não explicitada no que se entende por cada</p><p>um destes aspectos e sobre o tipo de "dado" a produzir. Suponho que pelo menos</p><p>uma parte dos epidemiólogos sente o mesmo com respeito ao dado antropológi­</p><p>co. Este ponto é particularmente importante e constitui um dos eixos das diferen­</p><p>ças que necessariamente tanto epidemiólogos como antropólogos devem preci­</p><p>s a r 1 0 .</p><p>ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DO</p><p>ENFOQUE ANTROPOLÓGICO</p><p>A Antropologia Médica e também outras disciplinas sócio-históricas tem</p><p>produzido materiais empíricos e teóricos que supõem não só contribuições, se­</p><p>não também possibilidades de articulação com a perspectiva epidemiológica, sem­</p><p>pre e quando exista realmente um interesse de articulação e no prime a exclusão</p><p>nos fatos. A seguir enumeraremos algumas destas contribuições socioantropoló¬</p><p>gicas.</p><p>A primeira contribuição refere-se a proposta de uma epidemiologia socio­</p><p>cultural; quer dizer que recupere os significados e as práticas que os conjuntos</p><p>sociais dão aos seus padecimentos, problemas, pesares, dores, e t c , articulados</p><p>com as condições estruturais e processuais que operam em uma situação histori­</p><p>camente determinada. É preciso lembrar que este tipo de epidemiologia sociocul­</p><p>tural tem sido produzida desde finais do século XIX e que durante os primeiros</p><p>cinqüenta anos deste século foi se enriquecendo através de contribuições pon­</p><p>tuais que possibilitaram sua expansão a partir da década de sessenta e setenta.</p><p>A primeira contribuição sistemática é a investigação de Durkheim (1897)</p><p>sobre o suicídio, o qual constituiu a seu tempo, e ainda segue sendo, uma alterna­</p><p>tiva teórico/metodológica para pensar o dado epidemiológico 1 1 . Posteriormente</p><p>os trabalhos de Dunhan e Faris sobre a esquizofrenia em Chicago, de Mauss</p><p>sobre as técnicas do corpo, de Devereux sobre o suicídio e o homossexualismo</p><p>entre os Mohave, de Mead e Bateson sobre problemas infantis em Bali, ou de De</p><p>Martino sobre o tarantismo no sul da Itália constituíram propostas de articulação</p><p>dos processos culturais e sociais com respeito a interpretação de padecimentos e</p><p>problemas, que possibilitaram a expansão desta aproximação a partir dos anos</p><p>sessenta e setenta (Caudill, 1953; Dunn e Janes, 1986; Opler, 1959; Paul, 1989;</p><p>Trostle, 1986a, 1986b; Young, 1982), e que supôs a contínua inclusão de marcos</p><p>referenciais teóricos não só antropológicos, mas sociológicos e "filosóficos" (ver</p><p>Bibeau, 1987) 1 2 . A possibilidade de uma epidemiologia sociocultural está radicada</p><p>no reconhecimento da existência de uma estruturação epidemiológica no saber</p><p>dos conjuntos sociais, o qual devemos reconstruir a partir das mesmas. Isto se</p><p>correlaciona com o reconhecimento da existência de uma estruturação epidemio­</p><p>lógica em todos os tipos de curadores, quer dizer nos médicos familiares e</p><p>generalistas, nos curadores populares, nos especialistas alopatas e de outros sis­</p><p>temas médicos como podem ser as numerosas religiões terapêuticas desenvolvi­</p><p>das nos últimos anos. Ditos saberes epidemiológicos profissionais apresentam</p><p>não só diferenças e antagonismos entre si, como também pontos de similaridade</p><p>e articulação. O saber epidemiológico dos conjuntos sociais é o que opera uma</p><p>síntese inicialmente pragmática, a partir de sua própria definição da significação</p><p>dos padecimentos que o ameaçam real ou imaginariamente (ver Menéndez 1984,</p><p>1990b, 1990d, 1994).</p><p>A epidemiologia sociocultural deve referir não só às representações como</p><p>também às práticas. Uma parte significativa da Antropologia Médica como da</p><p>Epidemiologia analisa só as representações dos conjuntos sociais. Esta maneira</p><p>de construir a informação deve ser modificada e nesta perspectiva é preciso assu­</p><p>mir que as representações não só devem ser referidas a indicadores objetivos -</p><p>por exemplo análises bioquímicas - como também às práticas que a população</p><p>produz e que não necessariamente são idênticas a suas representações. Partimos</p><p>do pressuposto metodológico da existência de discrepâncias constantes entre re­</p><p>presentações e práticas.</p><p>Em função do que foi assinalado é preciso assumir que os conjuntos sociais</p><p>manejam um número maior de representações que de práticas no que toca um</p><p>processo s/e/a determinado. As práticas supõem um tipo de síntese/seleção das</p><p>representações em função da ação. Isto não só se aplica ao saber popular, senão</p><p>também ao saber dos curadores, incluído o saber biomédico (Menéndez e Di</p><p>Pardo 1996a, 1996b).</p><p>O processo s/e/a deve ser entendido como uma construção social. Os con­</p><p>juntos sociais vão construindo um perfil epidemiológico in tegrado 1 3 ; porém é</p><p>preciso ressaltar que as representações e práticas relativas a cada um dos padeci­</p><p>mentos e a suas características clínicas e epidemiológicas, não aparecem como</p><p>algo estruturado, senão que emergem reativamente ante as situações específicas.</p><p>Quer dizer que reconhecemos um processo de constituição histórica do saber dos</p><p>conjuntos sociais, porém que deve, por sua vez, ser reconstruído no trabalho</p><p>antropológico. Os aspectos enumerados são alguns dos que integram o núcleo</p><p>central da proposta antropológica e que se estrutura em torno do reconhecimento</p><p>de que o processo saúde/enfermidade/atenção constitui um dos campos, para al­</p><p>guns o principal, em que os conjuntos sociais produzem o maior número de re¬</p><p>presentações e de práticas. Mais ainda, estas representações e práticas cumprem</p><p>várias tarefas fundamentais articuladas entre si, e que vão desde possibilitar uma</p><p>interpretação e ação com respeito aos padecimentos reconhecidos como ameaça­</p><p>dores até possibilitar articular a relação dos sujeitos e grupos sociais com a estru­</p><p>tura social.</p><p>O processo s/e/a inclui desde ações cotidianas de solução de problemas até a</p><p>elaboração de interpretações que expressam os núcleos centrais das ideologias/</p><p>culturas dominantes/subalternas dos diferentes grupos que transacionam em uma</p><p>sociedade determinada. Dado que os conjuntos sociais necessitam dar uma inter­</p><p>pretação, quer dizer, dar sentido e significado a seus padecimentos, a enfermida­</p><p>de e suas representações e práticas são, para a antropologia, parte constitutiva</p><p>dos sujeitos (Stein 1985, 1990).</p><p>Um aspecto nuclear da perspectiva antropológica que tem adquirido rele­</p><p>vância nos últimos anos com respeito a investigação e intervenção sobre o pro­</p><p>cesso s/e/a, é o que se refere ao uso de técnicas qualitativas de obtenção de infor­</p><p>mação, análise e/ou ação. A ênfase nas políticas de Atenção Primaria, por um</p><p>lado, e a modificação do perfil epidemiológico por outro, favoreceram o reco­</p><p>nhecimento da importância desta aproximação qualitativa, pelo menos com res­</p><p>peito a determinados padecimentos e determinadas estratégias.</p><p>Deve-se sublinhar que a recuperação da aproximação qualitativa relativa a</p><p>investigação do processo s/e/a se originou nos países capitalistas centrais, e em</p><p>particular a partir do desenvolvimento da síndrome de imunodeficiência adquiri­</p><p>da. As características da doença e dos sujeitos ou grupos portadores do problema,</p><p>evidenciaram rapidamente as limitações da aproximação estatística para obter</p><p>informação estratégica que pudesse ter algum tipo de utilidade explicativa e prá­</p><p>tica em termos do comportamento dos grupos de risco. A medida que se expandia</p><p>a epidemia da AIDS, os dados referentes a relação da AIDS com o homossexua-</p><p>lismo, bissexualismo, prostituição (incluída a prostituição infantil), e t c , eviden­</p><p>ciaram ainda mais a necessidade de trabalhar com aproximações de tipo qualita­</p><p>tivo.</p><p>Mas, e isto é o que me interessa ressaltar, o que se "descobriu" a respeito da</p><p>AIDS não é diferente do que sabíamos sobre outras doenças e problemas frente</p><p>aos quais a abordagem estatística evidenciava iguais ou maiores limitações para</p><p>obter informação estratégica. Na maioria dos países da América Latina temos</p><p>poucos</p><p>dados com respeito a toda uma série de padecimentos e a falta de infor­</p><p>mação deve-se não apenas a pouca confiabilidade nos sistemas de captação</p><p>institucional mas também ao tipo de instrumentos estatísticos aplicados nas in­</p><p>vestigações epidemiológicas.</p><p>Na maioria dos países da América Latina, conseqüentemente, a informação</p><p>epidemiológica não é confiável ou é inexistente para problemas como infanticidio,</p><p>suicídio, alcoolismo, dependência a drogas, homicídio, violência intrafamiliar,</p><p>violações, aborto, síndromes culturalmente denominados , cirrose hepática,</p><p>automedicação. Quase todos esses padecimentos e problemas, assim como a AIDS,</p><p>têm que ver com o "ocultamente" intencional ou funcional da informação, mas</p><p>sobretudo com a falta de interesse na modificação das estratégias metodológicas.</p><p>Assim, deve-se lembrar que vários dos padecimentos assinalados constituem</p><p>algumas das principais causas de mortalidade em vários países latino-americanos</p><p>tanto a nível geral quanto de grupos de idade, em particular. Ou seja, a não apli­</p><p>cação de técnicas qualitativas de obtenção de informação e de análise no estudo</p><p>desses padecimentos não é devido a importância secundária dos mesmos, mas a</p><p>outras causas que, em grande medida, estão relacionadas à concepção metodoló­</p><p>gica na construção da informação e à sobredeterminação do Modelo Médico</p><p>Hegemônico 1 4 .O registro de informação com respeito aos padecimentos assina­</p><p>lados deve, por sua vez, ser articulado com o tipo de informação produzida a</p><p>nível estatístico para tais problemas. Se observarmos, por exemplo, o tipo de</p><p>"dado" produzido epidemiologicamente para um problema como o "alcoolismo",</p><p>inclusive em países com tradição de investigação neste campo como o M é x i c o 1 5 ,</p><p>podemos notar que, depois de quase trinta anos de produzir surveys epidemioló­</p><p>gicos sobre esta problemática, as variáveis tomadas em conta continuam sendo</p><p>reiteradas sem que tenham gerado contribuições substantivas diferenciais (ver</p><p>Menéndez, 1990 a ; Menéndez e Di Pardo, 1996b).</p><p>Em todas elas se conclui que o alcoolismo opera em homens de determina­</p><p>das idades, sendo a maioria pertencente a determinados estratos sociais, que pro­</p><p>fessam determinada religião, que têm determinado nível educacional formal, e t c ,</p><p>mas sem produzir conteúdos em termos de significações e práticas que nos per­</p><p>mitam trabalhar com tais variáveis. Embora se fale em levar em conta os padrões</p><p>de consumo e as dinâmicas culturais, e inclusive alguns proponham estudar o</p><p>saber dos conjuntos sociais dado que consideram o "alcoolismo" como parte da</p><p>religiosidade popular, tal informação não se produz, salvo raras exceções, e as</p><p>reiteradas investigações estatísticas continuam sem apresentar dados estratégicos</p><p>para trabalhar com os comportamentos e com as estruturas sociais.</p><p>Mais ainda, o México produziu nos últimos cinco anos duas enquetes a nível</p><p>nacional sobre drogadições (SSA 1990 e 1993), incluindo nestas o alcoolismo, e</p><p>seus dados continuam a reiterar o uso das variáveis já conhecidas, sem produzir a</p><p>informação que possibilitaria um tipo de interpretação e de ação pelo menos dife­</p><p>rentes daquelas já dominantes.</p><p>Por outro lado, a Enquete Nacional de Saúde (SSA 1988) que detectou en­</p><p>fermidades crônicas por grupos de idade, codificou diabetes melllitus, hiperten­</p><p>são, bronquite, cardiopatias, artrite, desnutrição, tuberculose, epilepsia, cegueira,</p><p>surdez, retardo mental e outras causas. Entretanto, não detectou cirrose hepática</p><p>em termos de morbidade, embora seja uma das primeiras dez causas de mortali­</p><p>dade, constitua a primeira ou segunda causa de morte em grupos em idade produ¬</p><p>tiva, seja a principal causa de hospitalização nos serviços de gastroenterologia e</p><p>implique uma evolução patológica de entre oito e doze anos. Isso quer dizer que</p><p>não só o alcoolismo levanta problemas para os epidemiólogos, como também a</p><p>cirrose hepática.</p><p>A mudança para primeiro plano das enfermidades crônico-degenerativas tam­</p><p>bém favoreceu o reconhecimento das técnicas qualitativas, dado a crescente im­</p><p>portância outorgada aos estilos de vida tanto na causação como para o controle e,</p><p>sobretudo, autocontrole destas doenças. A recente ênfase dada a experiência do</p><p>sujeito enfermo, a convivência com "seu" padecimento e o "autocuidado" como</p><p>expressões que podem assegurar uma maior esperança e qualidade de vida, refor­</p><p>çam ainda mais a significação das técnicas qualitativas.</p><p>Estas últimas referências nos conduzem a outro fator que tem dado impulso</p><p>ao desenvolvimento da abordagem qualitativa. As propostas de Atenção Primá­</p><p>ria, não só as de Atenção Primária Integral e Seletiva, mas também as de Atenção</p><p>Médica Primária, supõem a inclusão de atividades de participação social e orga­</p><p>nização comunitária, a utilização de práticas populares ou o impulso da educação</p><p>para a saúde. Todas estas ações implicam a necessidade de produzir informação</p><p>clínica ou epidemiológica estratégica, para o que as técnicas qualitativas tornam-</p><p>se decisivas.</p><p>É preciso assumir, em toda sua significação, que a maioria da informação a</p><p>ser obtida para dar impulso a estas estratégias refere-se a processos sociais, cultu­</p><p>rais, ideológicos e políticos e que, além disso, é requerido incluir a ação a partir</p><p>não apenas dos serviços de saúde, senão, sobretudo, a partir da própria popula­</p><p>ção. Se isto é assumido realmente, e não apenas como proposta burocrática ou</p><p>meramente declarativa, supõe a utilização de uma abordagem qualitativa. Conse­</p><p>qüentemente, se é "real" a preocupação com a Atenção Primária e com os Siste­</p><p>mas Locais de Saúde (SILOS), tais objetivos requerem o desenvolvimento de</p><p>uma epidemiologia não só do patológico, mas dos "comportamentos normais",</p><p>assim como, portanto, sua relação com a estrutura e organização social a nível</p><p>local. Este é um ponto que mereceria discussão a partir de uma análise, por exem­</p><p>plo, das propostas de Atenção Primária e de como são realmente levadas a c a b o 1 6 .</p><p>DE EROSÕES METODOLÓGICAS E MEDICALIZAÇÕES</p><p>Faz poucos anos alguns dos mais destacados antropólogos médicos atuais,</p><p>entre os quais estava M. Lock, levantaram o perigo de medicalização da Antro­</p><p>pologia Médica, pelo menos nos Estados Unidos e no Canadá. Esta discussão se</p><p>apoiava sobre um aspecto que vem a ser desconhecido pelos sanitaristas, porém</p><p>também pelos antropólogos latino-americanos. Me refiro ao fato de que a Antro­</p><p>pologia Médica constitui nos EUA a disciplina antropológica de maior expansão</p><p>nos últimos dez anos, é a primeira ou segunda especialidade com maior número</p><p>de membros ativos, a que produziu o maior número de revistas especializadas</p><p>recentes, a que logra maior número de postos ocupacionais e um dos campos com</p><p>maiores recursos financeiros.</p><p>Esta expansão tem a ver com vários dos aspectos analisados, em particular,</p><p>com a aplicação da abordagem antropológica à investigação e ação em Atenção</p><p>Primária e sobre enfermidades crônicas, AIDS, drogadição, violências e saúde</p><p>reprodutiva, para os quais existem maiores fontes e quantias de financiamento.</p><p>O perigo de medicalização da antropologia era referido, a nível dos países</p><p>centrais, à ênfase na especialização antropológica correlativa da especialização</p><p>médica, a que o quantum maior de investigações epidemiológicas optavam pelo</p><p>enfoque ecológico cultural que é o mais similar, em suas concepções metodoló­</p><p>gicas e técnicas, ao enfoque epidemiológico, a um incremento constante de in­</p><p>vest igações de recorte empir is ta , a uma crescente subord inação teór ico-</p><p>metodológica ao Modelo Médico Hegemônico, etc.</p><p>Se bem que nossa experiência na América Latina não pode ser referida a</p><p>estes processos, pelo menos tal como foram analisados por antropólogos norte-</p><p>americanos, canadenses e britânicos, há, não obstante, alguns fatos que compar­</p><p>tilhamos, em grande medida porque foram desenhados e receberam impulso de</p><p>antropólogos e sanitaristas norte-americanos a partir</p><p>de suas investigações na</p><p>América Latina. Destes um dos mais destacados e de relativa expansão tem a ver</p><p>com o desenvolvimento de tecnologias rápidas de obtenção de informação e de</p><p>análise. Assim foram produzidos vários manuais de "etnografía rápida" voltados</p><p>para a obtenção de informação epidemiológica e sobre serviços de saúde (ver</p><p>Scrimshaw e Hurtado, 1988; Herman e Bentlee, 1992).</p><p>Em função da informação que manejo a respeito da América Latina, as</p><p>"etnografías rápidas" referidas ao processo s/e/a foram utilizadas basicamente</p><p>por médicos e paramédicos ou, para ser mais preciso, por equipes de saúde. Pode</p><p>haver antropólogos, geralmente norte-americanos, entre os introdutores desta</p><p>tecnologia, porém, em geral, sua instrumentação não esteve a cargo de antropó­</p><p>logos.</p><p>As etnografías rápidas partem de um fato que reiteradamente observamos</p><p>em nosso trabalho antropológico e que é justamente o que permitiu fundamentar</p><p>a significação das abordagens qualitativas. O trabalho com poucos informantes,</p><p>mas em profundidade, permite construir o perfil epidemiológico de um grupo</p><p>determinado, porém, além disso, possibilita a inclusão de informação econômi­</p><p>ca, política, sociocultural no estudo de tais padecimentos. Mais ainda, esta</p><p>epidemiología permite "encontrar" informação sobre padecimentos geralmente</p><p>relegados ou inexistentes nas enquetes epidemiológicas, assim como interpreta­</p><p>ções a partir do ponto de vista dos atores que permitiriam programar e desenvol­</p><p>ver atividades específicas. Porém, esta forma de trabalho antropológico supõe o</p><p>emprego de um largo e profundo trabalho de campo, em termos comparativos</p><p>com o trabalho epidemiológico. Por outro lado, esta metodologia supõe uma abor­</p><p>dagem de tipo holístico que, embora não se cumpra em sentido integral, opera</p><p>como marco referencial de nosso trabalho.</p><p>A proposta de "etnografías rápidas" implica despojar o trabalho antropoló­</p><p>gico não só de seu marco referencial holístico, como de sua profundidade. Esta</p><p>forma de trabalho leva a que aconteça o que já se produziu, por exemplo, com</p><p>respeito ao conceito estilo de vida; quer dizer, a erodir a capacidade teórico-</p><p>prática dos instrumentos sócio-antropológicos. Estas modificações se ajustam às</p><p>concepções de Atenção Médica Primária e, em certa medida, de Atenção Primá­</p><p>ria Seletiva e podem ter potencialidade operativa, porém praticamente impossibi­</p><p>litam obter o que constitui parte do núcleo da proposta antropológica: as signifi­</p><p>cações das representações e das práticas dos conjuntos sociais.</p><p>A meu ver esta proposta encobre um fato decisivo: alguns dos que lhe deram</p><p>impulso têm uma ampla experiência em trabalho antropológico junto a seus gru­</p><p>pos de interesse. É em função deste saber vivenciado que construíram modalida­</p><p>des de obtenção de informação e de intervenção transmissíveis apenas através de</p><p>um tipo de aprendizagem que implica tempo e trabalho de campo, o qual não se</p><p>dá. Em sua proposta, estes investigadores não incluem como variável decisiva o</p><p>papel de sua própria experiência profissional, des-historicizando seu instrumento</p><p>metodológico, para reduzi-lo a um recurso técnico. Este fato, que ao nosso ver é</p><p>determinante, praticamente não é analisado na proposta das etnografías rápidas.</p><p>Outro fato que não aparece suficientemente ponderado refere-se a utilização</p><p>de trabalhadores de saúde locais para levar a cabo estes trabalhos de etnografia</p><p>rápida. A experiência antropológica, assim como os programas de Atenção Pri­</p><p>mária integrais, tem verificado constantemente a viabilidade de produzir não ape­</p><p>nas curadores locais que manejem técnicas biomédicas como também que pos­</p><p>sam gerar uma epidemiologia local (ver Kroeger, Montoea-Aguilar e Bichman,</p><p>1989). Porém esta possibilidade está montada, no que toca a produção de dados</p><p>epidemiológicos e antropológicos, em que tais trabalhadores sejam membros do</p><p>grupo com o qual trabalham. Quando esta metodologia trata de ser apropriada,</p><p>em termos de investigação, por pessoas que não têm esta pertença ao grupo ou</p><p>que não têm o saber acumulado já assinalado, ocorrem problemas.</p><p>A esse respeito, há um ponto que me interessa enfatizar e que se refere à</p><p>forma pela qual a abordagem de tipo qualitativo está sendo utilizada pelo pessoal</p><p>oficial de saúde e também por membros de organizações não governamentais</p><p>(ONGs). Este uso está gerando a redução dos instrumentos teórico-metodológicos</p><p>a receitas técnicas e fazendo com que os financiamentos assim como as urgências</p><p>e as necessidades de entregar resultados passem a determinar o uso das técnicas.</p><p>Tanto em pesquisa como em pesquisa-ação sobre aspectos da realidade e proble­</p><p>mas que requerem justamente uma metodologia baseada, em grande medida, no</p><p>tempo, estão sendo aplicadas metodologias de urgência 1 7 .</p><p>A ênfase no qualitativo, o "falar" de etnografías porém rápidas, o incluir</p><p>uma terminologia que refere-se a significações, sentidos, representações, sabe­</p><p>res, identidades e, ultimamente, subjetividades; a conversão de instrumentos que</p><p>potencialmente produzem "etnografías profundas" em instrumentos que produ­</p><p>zem dados urgentes porém freqüentemente superficiais, supõe a necessidade de</p><p>começar a aclarar o sentido desta tendência que tende a apropriar-se de um corpo</p><p>de palavras que se referem a uma metodologia de tipo antropológico, porém que</p><p>estão sendo re-significadas a partir de uma concepção não qualitativa do "dado"</p><p>produzido, que na prática tende a separá-lo da referência teórica. Isto está se</p><p>dando não só em trabalhos realizados segundo uma perspectiva sanitarista, como</p><p>também em investigações ditas antropológicas.</p><p>O perigo do mau uso do qualitativo é que pode dar lugar a várias deforma­</p><p>ções: hiper-empirismo, a-teoricismo, qualidade duvidosa ou não estratégica da</p><p>informação, etc. ao interior da própria Antropologia Médica. Quer dizer, pode</p><p>chegar a replicar as características dominantes em muita da produção epidemio­</p><p>lógica e sociológica, que paradoxalmente questionou. A abordagem qualitativa</p><p>supõe não apenas o uso de determinadas palavras mas um rigoroso controle</p><p>epistemológico a nível artesanal, assim como um questionamento metodológico</p><p>das urgências 1 8 .</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BASTIDE, R. (1967). Sociología de las enfermedades mentales. México: Siglo XXI Edi­</p><p>tores</p><p>BIBEAU, G. (1987). Nouvelles directions dans Panthopologie medico-psychiatrique nord-</p><p>americaine. 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Contudo, o seu objetivo não é empreender uma crítica a esta</p><p>última a partir do enfoque antropológico, senão de explorar o potencial analítico</p><p>advindo do encontro dessas duas disciplinas, que hoje configura a chamada an­</p><p>tropologia psicológica. A discussão de Cravalho está centrada no conceito de</p><p>mecanismo de defesa constituído culturalmente (MDCC), desenvolvido pelo an­</p><p>tropólogo americano Melford Spiro na década de 60. Cravalho utiliza o conceito</p><p>de MDCC para interpretar a história de Seu Mauro, habitante de uma pequena</p><p>vila no interior do Pará que fora afligido por espíritos ou guias durante toda sua</p><p>vida. Em sua análise do caso de Mauro procura mostrar como uma abordagem</p><p>forjada na interseção entre a antropologia e a psicologia permite lançar luz sobre</p><p>a questão central das motivações que conduzem os indivíduos a aderir diferen¬</p><p>cialmente aos modelos culturais</p><p>Em seu capítulo, Maria Gabriela Hita (ECSAS, Universidade Federal da</p><p>Bahia) estabelece um diálogo tanto com a epidemiologia quanto com a psiquia­</p><p>tria no que toca ao estudo de questões relativas a saúde mental feminina. Para</p><p>superar algumas das limitações inerentes a abordagem epidemiológica de fatores</p><p>de risco - que, como o termo indica, reduz processos e contextos sociais comple­</p><p>xos a unidades isoláveis ou fatores (crítica também presente nas discussões de</p><p>Menéndez e Grimberg) - Hita trabalha com a idéia de experiências e processos</p><p>de fragilização a saúde mental feminina. Retomando a discussão travada por psi­</p><p>quiatras e sociólogos sobre a associação entre gênero feminino e certas doenças</p><p>mentais, frisa a importância de se empreender análises mais finas, que levem em</p><p>consideração diferentes dimensões ao interior do que se caracteriza como a expe­</p><p>riência feminina, particularmente no que diz respeito a classe e a cultura. Para</p><p>ressaltar o potencial da abordagem proposta, Hita apresenta dados de pesquisa</p><p>realizada entre mulheres de classe trabalhadora de Salvador, que se identificam a</p><p>partir da categoria êmica de nervoso.</p><p>O capítulo 11, de Cecilia McCallum (London School of Economics), é um</p><p>estudo sobre a concepção de doença e cura entre os Kaxinawá. A autora defende</p><p>a tese de que essa concepção só pode ser compreendida quando se leva em devi­</p><p>da consideração a interdependência entre saber e corpo no pensamento e prática</p><p>dos Kaxinawá. Mediante uma cuidadosa análise etnográfica, McCallum observa</p><p>que as tradicionais dicotomias ocidentais, muitas delas presentes nos estudos</p><p>biomédicos e antropológicos, entre natureza/cultura, mente/matéria, matéria/es­</p><p>pírito, corpo biológico/pessoa social devem ser desconstruídas e repensadas a</p><p>fim de que se possa melhor entender as questões relativas ao corpo, a saúde e a</p><p>medicina.</p><p>Acreditamos que os textos se seguem oferecem um panorama amplo e va­</p><p>riado da antropologia médica, seja refletindo sobre a especificidade de sua abor­</p><p>dagem no confronto com outras disciplinas, seja explorando os caminhos e ques­</p><p>tões abertos por essa abordagem na pesquisa empírica. Os autores da coletânea,</p><p>entretanto, não dialogam apenas com representantes de outros campos do saber,</p><p>mais ou menos próximos a antropologia médica. Há também um diálogo interno</p><p>entre eles, entre os diferentes modos como pensam a antropologia médica e pre­</p><p>tendem colocá-la em prática. Esse diálogo, bastante ilustrativo da vitalidade da</p><p>antropologia médica, cabe ao leitor reconstituir.</p><p>O STATUS ATUAL DAS</p><p>CIÊNCIAS SOCIAIS EM SAÚDE</p><p>NO BRASIL: TENDÊNCIAS</p><p>Paulo César Alves</p><p>Miriam Cristina Rabelo</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>O presente capítulo objetiva tecer algumas considerações sobre a produção</p><p>brasileira relacionada às ciências sociais em saúde. Mais especificamente, pre­</p><p>tende desenvolver dois pontos: traçar um rápido perfil do profissional que traba­</p><p>lha nesse campo de conhec imen to e apresen ta r uma t e n d ê n c i a t eó r i co -</p><p>metodológica que parece caracterizar os estudos mais recentes nessa área. Quan­</p><p>to ao segundo ponto, não procuramos fazer uma revisão bibliográfica mas apenas</p><p>identificar que tipo de transformação interpretativa vem se desenvolvendo na</p><p>atual década. Acreditamos que o delineamento dessas duas questões é de funda­</p><p>mental importância para que possamos compreender o status atual das ciências</p><p>sociais em saúde no Brasil.</p><p>SITUAÇÃO</p><p>O explosivo interesse dos cientistas sociais pelas questões relativas à saúde</p><p>é um fato digno de observação. Trata-se de um fenômeno que não pode ser sim­</p><p>plesmente cons iderado como efeito de uma moda in te lectual . A anál ise</p><p>globalizante da literatura específica sobre as ciências sociais em saúde é sempre</p><p>importante e, ao longo do tempo, tem sido conduzida por diversos teóricos da</p><p>área (ver, por exemplo, Apple, 1960; Fabrega, 1971; Colson and Selby, 1974;</p><p>Foster and Anderson, 1978; Landy, 1983; Nunes, 1985; Marsella, 1989). Contu­</p><p>do, devido a imensa proliferação de trabalhos nessa área, torna-se cada vez mais</p><p>inviável qualquer revisão bibliográfica que pretenda ser exaustiva. Estamos atual­</p><p>mente bastante longe do tempo em que Strauss (1956) conseguiu identificar ape­</p><p>nas 144 cientistas sociais nos Estados Unidos que trabalhavam nesse campo.</p><p>Milhares de profissionais, espalhados nas diversas instituições acadêmicas e ser­</p><p>viços públicos, escrevem livros e publicam artigos em revistas especializadas</p><p>que direta ou indiretamente são relevantes para as ciências sociais em saúde.</p><p>Uma revisão bibliográfica dessa produção é ainda mais problemática se levarmos</p><p>em consideração que o conjunto de indivíduos intitulados como sociólogos ou</p><p>antropólogos da saúde constitui na realidade uma comunidade altamente hetero­</p><p>gênea, cujos membros, com formação diversificada, estão engajados em uma</p><p>miríade de atividades, desenvolvem continuamente novos objetos de estudos e ex­</p><p>ploram as mais diferentes abordagens teórico-metodológicas nos seus trabalhos.</p><p>Reconhecer a heterogeneidade desses cientistas, entretanto, não significa</p><p>afirmar que as ciências sociais em saúde não possuam um núcleo epistêmico</p><p>específico. Como todo saber científico, esse núcleo revela-se de maneira proces­</p><p>sual, progressiva. Trata-se, contudo, de um campo epistemológico que ainda não</p><p>está devidamente claro e consensualmente delimitado de tal forma que possa ser</p><p>configurado dentro de um espaço estabelecido por uma única ciência. Os traba­</p><p>lhos desenvolvidos nessa área apresentam não só uma pluralidade de objetos de</p><p>investigação como também orientações teórico-metodológicas pluri ou transdis¬</p><p>ciplinares. Esse fenômeno parece ser natural pois a saúde, enquanto um fato bio-</p><p>psico-social, requer cada vez mais a contribuição de diversas ciências. Como</p><p>observa Minayo (1991), a própria polissemia do termo saúde escapa do objeto de</p><p>qualquer disciplina. Assim, é de se esperar que a transdisciplinaridade ou inter¬</p><p>disciplinaridade - ou "conexões interdisciplinares", conforme o dizer de Japiassu</p><p>(1976) - se constitua em um projeto e, ao mesmo tempo, um grande desafio para</p><p>as ciências sociais em saúde (Spink, 1992; Nunes, 1995).</p><p>A produção brasileira sobre as questões sociais da saúde revela de forma</p><p>bastante profusa essa heterogeneidade, tanto ao nível do pesquisador quanto ao</p><p>objeto de estudo. Trata-se, antes de mais nada, de uma literatura que tem crescido</p><p>significativamente (Teixeira, 1985; Queiroz e Canesqui, 1986; Nunes, 1992;</p><p>Canesqui, 1995). Esse fato torna-se ainda mais saliente quando se observa que</p><p>essa produção é recente, iniciada de forma sistemática nos anos 70. É claro que</p><p>antes desse período tivemos alguns trabalhos relacionados com a problemática</p><p>sócio-cultural da saúde 1 . Contudo, somente nos fins da década de 60 e princípios</p><p>de 70 é que passamos a ter uma massa crítica de profissionais acadêmicos inte­</p><p>ressados pelas relações dinâmicas entre a nossa</p><p>(Ed.), (1970). Deaviance & Respectability. The Social Construction of</p><p>Moral Meanings. Nova York: Basic Books.</p><p>DUNN, F. e C. JANES. (1986). Introduction. In Janes, Stall e Gifford (Eds.), Medical</p><p>Anthropology and Epidemiology, pp. 3-34.</p><p>DURKHEIM, E. (1974). El Suicidio. México: UNAM.</p><p>DYNAMIS, 1980-1995. Granada: Universidad de Granada.</p><p>FITZPATRICK, R. e G. SCAMBLER. (1990). Clase social, etnicidad y enfermedad. In</p><p>R. Fitzpatrick e G. Scambler: La enfermedad como experiencia. México: Fondo de</p><p>Cultura Económica, pp. 65-97</p><p>GAINES, A. .(Edit.). (1992). Ethnopsychiatry The Cultural Construction of Professional</p><p>and Forlk Psychiatries. Albany: State University of New York Press</p><p>HERMAN, E. e M. BENTLEY. (1992). 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É importante observar, contudo, que a Epidemiologia Social não só inclui informa­</p><p>ção de tipo sociocultural ou ideológico como tampouco a Antropologia Médica se restringe aos</p><p>processos econômico-políticos, conforme apontam algumas tendências.</p><p>3 Estas conclusões não ignoram que algumas das principais contribuições em epidemiologia</p><p>histórica foram realizadas</p><p>por epidemiólogos. Assim MacKeown (1976), analisando dados</p><p>epidemiológicos em uma série histórica larga, demonstrou, para vários países europeus, a reduzida</p><p>significação da biomedicina na eliminação das principais enfermidades infecto-contagiosas durante</p><p>a segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.</p><p>4 O sanitarismo britânico, que utilizou desde cedo e amplamente este conceito, foi notadamente</p><p>influenciado pelos estudos sociohistóricos sobre cultura trabalhadora. Ver Fitzpatrick e Scambler,</p><p>1990.</p><p>5 Recordemos que o conceito de hábito era utilizado com este nome por uma parte da socio­</p><p>logia e antropologia norte-americana e com o nome de estilo por uma parte dos historicistas ale­</p><p>mães mais de trinta anos antes que Bourdieu o utilizasse de forma quase idêntica. 6 Consideramos</p><p>que um saber se constitui pela articulação de representações e práticas a partir de um efeito de poder</p><p>que opera nas relações de hegemonia/subalternidade de onde se joga dito saber.</p><p>7 Para uma revisão deste tipo, ver a análise da participação social em saúde na América Latina</p><p>realizada por Ugalde, 1985.</p><p>8 Ver a discussão sobre o continuum folk-urbano para América Latina. Recordemos que vári­</p><p>os dos principais teóricos desta proposta, em particular Redfield e Foster, a realizaram a partir da</p><p>realidade mexicana. Não é casual tampouco que as tipologias transicionais incluíram característi­</p><p>cas do processo s/e/a, dado que ditos autores são alguns dos "pais fundadores" dos estudos</p><p>etnomédicos para América Latina.</p><p>9 Esta teoria na América Latina não pode dar conta em termos técnicos de vários processos,</p><p>entre os quais sublinhamos: a) o papel das "violências" ou da cirrose hepática no perfil epidemiológico</p><p>"antes" e durante a transição; b) o retorno de padecimentos como o dengue hemorrágico, o cólera</p><p>ou a tuberculose; c) o papel das novas enfermidades infecto-contagiosas que não podem ser reduzi¬</p><p>das a AIDS; d) a constatação de que no perfil da morbidade determinados padecimentos infecto-</p><p>contagiosos continuam sendo os episódios mais freqüentes e recorrentes, o que não é explicado por</p><p>uma proposta de transição centrada na mortalidade. A carência de um marco teórico conduz a sérias</p><p>incongruências no manejo dos dados empíricos, porém, além disso, possibilita a inclusão "objeti­</p><p>va" dos condicionantes ideológicos. Assim, dentro desta "teoria", não há resposta teórica para per­</p><p>guntas referidas a direção para qual se orienta a transição por exemplo no que toca os homicídios:</p><p>para um modelo como o da Comunidade Européia com baixas taxas ou para um modelo norte-</p><p>americano com taxas altas e em incremento?</p><p>1 0 Para dar um exemplo facilmente reconhecível: quando epidemiólogos e sociólogos utili­</p><p>zam o conceito ou indicador nível educacional — entendido como educação formal — e referem-no</p><p>a comportamentos maternos ou migratórios, está a operar um suposto não explicitado de que ditos</p><p>níveis estão referidos a fatores culturais. Esta significação emerge sobretudo na discussão dos re­</p><p>sultados.</p><p>1 1 A proposta durkheimiana é criticável sob muitos aspectos, porém, não obstante, contém</p><p>algumas das contribuições que diferenciam e legitimam a aplicação do enfoque socioantropológico</p><p>ao processo s/e/a. Suas contribuições não se referem só a sua proposta de estudar o processo s/e/a</p><p>em termos de representações e de práticas (rituais) coletivos, senão também a necessidade de cons­</p><p>truir o dado a partir da teoria e de uma metodologia da ruptura. Não se pode realmente compreender</p><p>Bachelard, Canguilhen ou Foucault passando por Mauss e Bourdieu sem rever em profundidade</p><p>Durkheim. O principal problema de sua proposta reside na "eliminação" do sujeito, mais claramen­</p><p>te expresso no fato de que as significações são referidas às representações e práticas dos conjuntos</p><p>sociais e não dos indivíduos, eliminando uma das principais fontes de sentido. A partir dessa pers­</p><p>pectiva sua análise do suicídio em termos de representações e práticas coletivas constitui um ato de</p><p>provocação metodológica.</p><p>1 2 Em uma perspectiva epidemiológica os trabalhos de Cassei (1955, 1988) e de alguns psi­</p><p>quiatras culturais (ver Bastide, 1967; Corin, 1988; Devereux, 1937; Opler, 1959) estabeleceram as</p><p>possibilidades de articulação, ao incorporar as dimensões socioculturais ao estudo da enfermidade</p><p>mental. A esse respeito, não é casual que estes antropólogos, porém também estes epidemiólogos,</p><p>tiveram experiência "etnográfica" com grupos não ocidentais .</p><p>1 3 Por integrado, queremos assinalar que no perfil se incluem o conjunto de padecimentos,</p><p>penas, dores, problemas ou enfermidades, sintetizando concepções e práticas advindas de diferen­</p><p>tes saberes. Esta qualidade de síntese provisória é necessária para assegurar o processo de reprodu­</p><p>ção biosocial. Em vários trabalhos que realizamos ou supervisionamos podemos verificar</p><p>reiteradamente que os grupos atuam frente a um padecimento segundo determinada normatividade</p><p>social, a qual deixa de operar se o tratamento selecionado não resulta eficaz, recorrendo-se, então,</p><p>a outras estratégias de intervenção, determinadas por sua capacidade/possibilidade de utilizá-las.</p><p>Assim as mães deixam de diagnosticar empacho ou mal olhado e passam a re-significá-los como</p><p>gastroenterite se as ações não dão resultado e vice-versa (Ver Mendoza, 1994; Menéndez, 1984,</p><p>1990d; Osorio, 1994). A codificação dos padecimentos em termos de enfermidades dos "curandei¬</p><p>ros" e enfermidades dos "médicos" construída e codificada por toda uma corrente de investigações</p><p>antropológicas, se constituiu observando-se quase exclusivamente representações sem referências</p><p>às práticas. Nas práticas a enfermidade emerge como processo de síntese.</p><p>1 4 O fato de que a preocupação com e compilação de informação mais confiável sobre proble¬</p><p>mas/padecimentos como violência intrafamiliar, violência a criança, violações, situação dos doen­</p><p>tes mentais ou contaminação foi produzida por ONGs e não por serviços de saúde públicos e priva­</p><p>dos reforça esse ponto.</p><p>1 5 A mortalidade por alcoolismo, medida através de indicadores diretos e indiretos, constitui</p><p>uma das primeiras causas de morte no México em idade produtiva, tanto para homens como para</p><p>mulheres (Ver Menéndez e Di Pardo, 1981, 1996b; Menéndez, 1990a).</p><p>1 6 É óbvio que as propostas de investigar a "saúde positiva", a "qualidade de vida" ou os</p><p>recursos que os sujeitos/grupos têm para enfrentar seus padecimentos (coping), merecem, ainda</p><p>mais, a aplicação de uma abordagem de tipo qualitativa.</p><p>1 7 Aclaremos que a urgência na produção de resultados não constitui uma particularidade das</p><p>ciências da saúde. Há anos, quando uma parte dos sociólogos "redescobriram" o qualitativo, con­</p><p>verteram alguns instrumentos qualitativos em técnicas rápidas. Um dos primeiros exemplos foi a</p><p>conversão das histórias de vida socioantropológicas em histórias de vida estruturais de por volta de</p><p>uma página e meia e constituídas por uma enumeração de variáveis similares a um perfil demográfico</p><p>e ocupacional. Nos últimos anos ocorreram vários experimentos interessantes que tiveram rápida</p><p>difusão. Um deles é a aplicação do critério de "saturação" às entrevistas em profundidade ou às</p><p>histórias de vida o que, entre outras coisas, implicou a não possibilidade de construir padrões de</p><p>comportamentos "reais". Outro, o desenvolvimento dos "grupos focais" manejados com as mesmas</p><p>características aplicadas nas "entrevistas de mercado". E um último exemplo é o que postula uma</p><p>única entrevista como meio através do qual emergem as representações e práticas dos sujeitos refe­</p><p>ridos a problemas como AIDS, saúde reprodutiva ou violações. A discussão dos fundamentos</p><p>metodológicos destas modificações deve incluir o papel das urgências e dos financiamentos.</p><p>1 8 Não desconhecemos a utilização de técnicas qualitativas no trabalho sanitarista latino-</p><p>americano que no caso do México está referida quase exclusivamente ao uso de serviços de saúde,</p><p>porém considero que esta, além de ser</p><p>muito escassa, não está integrada ao trabalho epidemiológico</p><p>e aparece como um produto paralelo.</p><p>RELAÇÕES ENTRE EPIDEMIOLOGIA</p><p>E ANTROPOLOGIA</p><p>Mabel Grimberg</p><p>No nos une el amor sino el espanto...</p><p>Borges</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Nos últimos dez anos tem sido afirmado o reconhecimento do caráter com­</p><p>plexo e multidimensional dos problemas de saúde-enfermidade e, correlativamente,</p><p>a necessidade de articulação entre distintas abordagens. De fato, está hoje claro</p><p>que a complexidade da maior parte dos problemas de saúde-enfermidade excede</p><p>as categorias analíticas, as metodologias e técnicas - de estudo e intervenção -</p><p>dos atuais e estreitos marcos disciplinares. Os requerimentos de interdisciplina</p><p>estão cada vez mais a vista e são cada vez mais numerosos tanto em termos de</p><p>discurso acadêmico como político institucional.</p><p>Parte deste reconhecimento se manifesta nas propostas - embora segundo</p><p>nosso critérios ainda iniciais - de incluir a análise sociocultural e o uso de méto­</p><p>dos qualitativos em alguns programas de investigação impulsionados por orga­</p><p>nismos e fundações internacionais 1 e em programas de pós-graduação 2 . A incor­</p><p>poração de enfoques qualitativos e especificamente de estudos etnográficos em</p><p>linhas de investigação epidemiológicas pode abrir importantes perspectivas na</p><p>análise das relações entre saúde e práticas sociais. Entretanto, deve notar-se que</p><p>esta tendência parece basicamente reduzida àquelas propostas que vinculam em</p><p>termos causais problemas de saúde a "comportamentos" de determinados indiví­</p><p>duos ou grupos (Standig, 1992; Glick Schiller, 1994).Neste contexto, resulta de</p><p>sumo interesse a crescente preocupação com as relações entre epidemiologia e</p><p>antropologia em encontros e outros eventos acadêmicos, assim como a sistemáti­</p><p>ca aparição da temática em distintas publicações sobretudo dos EUA e Canadá</p><p>(Janes, C. R. et al.. 1986; True, 1990). Lamentavelmente, como assinalam vários</p><p>trabalhos, as relações entre epidemiologia e antropologia são todavia escassas e</p><p>pontuais e com notórias dificuldades, ao mesmo tempo em que as iniciativas</p><p>parecem responder mais a preocupações surgidas do campo antropológico (Inhorn,</p><p>1995). Na maior parte dos países da América Latina as experiências de colabora­</p><p>ção são escassas e a preocupação com a problemática, inicial e desigual, enquan¬</p><p>to que na Argentina a reflexão sobre a problemática parece não ter se instaurado</p><p>a inda 3 .</p><p>Esta apresentação se inscreve em uma linha de reflexão teórico-metodológi¬</p><p>ca do Programa de Antropologia y Saúde da Faculdade de Filosofia e Letras da</p><p>universidade de Buenos Aires, centrada no estudo da constituição, perspectivas e</p><p>problemas da Antropologia Médica, com ênfase no contexto latino-americano</p><p>(Grimberg, 1992; 1994; 1995). Contribuiu de forma decisiva para esta linha o</p><p>trabalho bibliográfico, assim como os resultados da primeira etapa de investiga­</p><p>ção sobre Construção Social e Hegemonia em sua aplicação ao caso HIV-AIDS 4 .</p><p>Devo deixar claro, então, que as reflexões apresentadas aqui têm, em sua maior</p><p>parte, como referência, bibliografia sócio-antropológica relacionada ao comple­</p><p>xo HIV-AIDS.</p><p>Começo discutindo alguns aspectos da relação entre epidemiologia e antro­</p><p>pologia que considero problemáticos, atendendo a questões relacionadas com as</p><p>tradições históricas e os marcos dominantes de ambas disciplinas. Em uma se­</p><p>gunda parte focalizo algumas condições para o encontro, para colocar na terceira</p><p>algumas propostas que considero passíveis de aprofundar o caminho iniciado.</p><p>AS RELAÇÕES DIFÍCEIS:</p><p>ENCONTROS E DESENCONTROS</p><p>Embora se enfatize a necessidade da articulação antropologia-epidemiologia</p><p>tanto para um avanço significativo na compreensão e elaboração de estratégias</p><p>globais frente a problemas de saúde-enfermidade (o HIV-AIDS é um exemplo),</p><p>como para o próprio desenvolvimento de cada uma das disciplinas (Brown, 1992;</p><p>Frankemberg, 1994; Almeida, 1992), a maior parte da bibliografia antropológica</p><p>destaca as dificuldades, em termos de divergências e oposições, mais que os pon­</p><p>tos ou possibilidades de encontro.</p><p>Considerando o peso das diferenças na abordagem, conceitualização e mo­</p><p>dalidade explicativa dos problemas de saúde-enfermidade entre ambas discipli­</p><p>nas, deve se reconhecer distintos níveis de dificuldades, que situam estas rela­</p><p>ções pelo menos como problemáticas. Tomando como ponto de partida a vigên­</p><p>cia de um discurso que planteia estas relações em termos de oposição, podemos</p><p>organizar estas oposições sob quatro eixos:</p><p>a) O primeiro relativo ao modo de construção do objeto de estudo. Assim</p><p>tem sido apontado que a epidemiologia trata a "enfermidade" a partir de uma</p><p>definição profissional - a partir de categorias médicas - e se volta para determi­</p><p>nar sua prevalência e incidência ("mais quantitativa"), abordagem sintetizado no</p><p>estudo da distribuição e determinação da enfermidade nas populações. A antro­</p><p>pologia, diferentemente, indaga "problemas" a partir de uma definição "popu­</p><p>lar", não profissional, ou a partir da perspectiva dos atores, utilizando "categorias</p><p>mais amplas e menos definidas" (Bibeau, 1992), focalizando a análise na "expe­</p><p>riência" da enfermidade, nos sentidos culturais e nas relações sociais que consti­</p><p>tuem esta experiência (Kleiman, Eisembergl & Good, 1978; Kleiman, 1981).</p><p>b) Um segundo ponto remete a oposição objetividade/subjetividade, segun­</p><p>do a qual a epidemiologia se ocuparia de "entidades" (objetos empiricamente</p><p>verificáveis), enquanto a antropologia atenderia os aspectos subjetivos e inter­</p><p>subjetivos das representações e práticas. Este ponto foi colocado em termos de</p><p>uma oposição entre um reducionismo positivista - epidemiologia - e um holismo</p><p>humanista - antropologia - (Fabrega, 1974; Gifford, 1986), que enfatiza as dife­</p><p>renças entre um conhecimento estatístico e um conhecimento interpretativo a</p><p>partir das interações com os sujeitos. Paradoxalmente, este é um dos aspectos em</p><p>que vem a centrar-se a possibilidade de complementaridade entre ambas discipli­</p><p>nas.</p><p>c) Outro eixo implica os modelos explicativos, em particular a causalidade.</p><p>Neste sentido, tem sido apontado o predomínio na epidemiologia de modelos que</p><p>impl icam uma " c a u s a l i d a d e l inear" , um " n ú m e r o l i m i t a d o de fa to res</p><p>determinantes" (Bibeau, 1992), em sua maior parte focalizados em "comporta­</p><p>mentos individuais" e em certas "características comuns" (idade, gênero, educa­</p><p>ção, etc.) dirigidos a identificar "grupos"/"comportamentos individuais de risco"</p><p>(Standing, 1992; Glick Schiller, 1994). A partir de uma tradição mais holística, a</p><p>antropologia privilegia modelos explicativos centrados na análise do "contexto"</p><p>de produção ou construção dos problemas, atendendo ao contexto de significa­</p><p>ção cultural e aos aspectos subjetivos e intersubjetivos (Kleinman, Eisemberg &</p><p>Good, 1978; Kleinman, 1981; Glick Schiller, 1994), ou incorporando a estes as</p><p>"condições materiais" (Bibeau, 1992) e o "contexto histórico social" (Standing,</p><p>1992; Frankemberg, 1994).</p><p>d) Vinculado ao anterior, um quarto eixo inclui os métodos e as técnicas. De</p><p>um lado, os estudos experimentais e sócio-estatísticos, o compromisso quantita­</p><p>tivo, a abordagem extensiva e generalizante da epidemiologia; o privilégio da</p><p>representatividade, as técnicas de análise probabilísticas, de validação de variá­</p><p>veis, a ênfase na padronização de instrumentos e no problema do controle. De</p><p>outro, a bordagem intensiva e localizada da antropologia, o privilégio do estudo</p><p>local, a análise de casos em profundidade, das histórias de vida e dos pequenos</p><p>grupos, priorizando a significação dos processos e sua relação com o contexto</p><p>sociocultural mais amplo, assim como os processos de interação entre investiga­</p><p>dor e sujeitos para a produção de conhecimento.</p><p>e) Um último aspecto a levar em conta: diferente da epidemiologia, que con­</p><p>cebe a população em termos "agregado de indivíduos",</p><p>constituindo-a em "objeto</p><p>de intervenção profissional", a antropologia opera com conceitos como os de "co­</p><p>munidade", heterogeneidade social, cultural e econômica, enfatizando o papel dos</p><p>atores como participantes na solução de problemas de saúde (Bibeau, 1992).</p><p>Uma análise mais profunda mostra, a meu ver, que um conjunto de reificações</p><p>se encontram na base destas oposições, reificações da enfermidade e do corpo</p><p>enfermo, do conhecimento e sua metodologia, etc. por parte da epidemiologia.</p><p>Reificações da cultura e dos sujeitos, do tipo de conhecimento e sua metodologia,</p><p>do alcance das significações, e t c , por parte da antropologia.</p><p>Entretanto, é preciso se reconhecer que reificações deste tipo também se</p><p>encontram na base das proposições que reduzem a possibilidade do encontro a</p><p>incorporação de técnicas etnográficas para uma primeira etapa - exploratória -</p><p>de uma investigação com metodologia quantitativa (estatística), ou a possibilida­</p><p>de de aprofundamento de algumas "variáveis" e "indicadores" para uma etapa</p><p>posterior. Também expressam reificações propostas tais como as de complementar</p><p>a preocupação epidemiológica com o "quem", "quando", "onde" e "como" dos</p><p>processos de saúde-enfermidade, com o "porque" contextual da aptropologia (Inhom,</p><p>1995), ou a de construir uma etnografía epidemiológica (Janes, 1986). Definitiva­</p><p>mente, é significativo que a maior parte das tentativas de articulação se mantenham</p><p>exclusivamente no plano metodológico, sem abordar o problema das categorias e</p><p>perspectiva de análise que sustentam o metodológico nas duas disciplinas.</p><p>Interessa, então, pelo menos assinalar algumas noções reificadas que estão</p><p>em jogo.</p><p>Um problema básico é a noção biomédica de enfermidade como entidade,</p><p>estado ou processo natural - "objetivo " - (mais facilmente anormalidades orgâ­</p><p>nicas), independente de todo processo histórico social e cultural de produção e</p><p>definição. Em outras palavras, a proposição positivista de categorias biológicas</p><p>como condições cientificamente verificáveis, submetidas a leis naturais (Conrad</p><p>& Scheneider, 1985) e, portanto, de um conhecimento objetivo, livre de condi­</p><p>cionamentos histórico-políticos e culturais (Singer, 1990). Tal naturalização per­</p><p>mite obscurecer os processos que constituem os problemas de saúde, ao mesmo</p><p>tempo, tanto em condições de vida emergentes quanto em construções culturais,</p><p>em significantes sociais (Kleinman, 1981). Trata-se de uma reificação, por sua</p><p>vez, que oculta as relações sociais (econômicas, políticas, ideológicas e cultu­</p><p>rais) e o caráter de construção social (histórico-política) destas categorias, assim</p><p>como a ordem moral a que remetem. Impede sobretudo reconhecer sua contribui­</p><p>ção ao crescente processo de medicalização de áreas chaves das práticas cotidia­</p><p>nas dos conjuntos sociais, e o papel de parte da medicina de construção e expan­</p><p>são da enfermidade (Freidson, 1978).</p><p>Mais além das diferenças ou ponderações conceituais em que se firmam as</p><p>distintas perspectivas, os estudos de antropologia médica vêm trazendo uma am­</p><p>pla gama de constatações em torno do caráter de construção - cultural, histórica</p><p>social - da "enfermidade" e das categorias epidemiológicas.</p><p>Outro problema resulta da incorporação subordinada e naturalizadora que os</p><p>enfoques multicausais e algumas perspectivas críticas à "historia natural da en¬</p><p>fermidade" fazem do social e cultural. Esta se dá seja através de sua incorporação</p><p>como mais um fator, reduzido a indicadores mensuráveis em termos de educa­</p><p>ção, sexo, idade, nível sócio-econômico, e t c ; seja fragmentando e isolando em</p><p>ações pontuais descontextualizadas uma categoria descritiva tão fértil como a de</p><p>"estilos de vida", enfoque segundo o qual o sujeito se dilui ou aparece apenas a</p><p>partir do lugar negativo da transgressão.</p><p>Um problema particularmente relevante se expressa nos estudos epidemio­</p><p>lógicos de "grupos" ou "comportamentos de risco", que em sua maior parte, se</p><p>constróem a partir de uma seleção de condições ou propriedades atribuídas como</p><p>inerentes a ditos "grupos" ou "comportamentos", tais como os estudos de "ho­</p><p>mossexuais", "prostitutas" ou "drogadictos". Outro problema está na utilização</p><p>de noções de senso comum no discurso médico como põe em evidência o peso</p><p>que tem um termo como "promiscuidade" para descrever e explicar práticas</p><p>sociais.</p><p>Estas reificações "de-historicizam" os conteúdos de "desaprovação de com­</p><p>portamentos perigosos" incluídos nas categorizações acerca do HIV-AIDS e suas</p><p>vinculações com outras epidemias. A atualização e o reforço de processos de</p><p>estigmatização e discriminação social de sujeitos e grupos sociais não pode ser</p><p>considerada um "efeito não desejado" das categorias epidemiológicas; é estrutu­</p><p>ral a um processo mais amplo de construção social de identidades e práticas, que</p><p>obtém sua validação científica através da medicina.</p><p>Sem embargo, outro tipo de problemática surge das correntes críticas da</p><p>epidemiologia que, centradas na consideração das dimensões econômico-políti­</p><p>cas dos processos de saúde-enfermidade, não consideram a dimensão da signifi­</p><p>cação social, nem fazem uma contextualização com base nos processos que re­</p><p>metem às identidades e práticas dos sujeitos e grupos sociais.</p><p>Um conjunto de problemas se vincula às próprias reificações antropológi­</p><p>cas, quer dizer, àqueles enfoques que reduzem a enfermidade a construção cultu­</p><p>ral, significante social ou metáfora, deixando fora da análise a "materialidade"</p><p>do sofrimento e as mudanças na subjetividade; ou que separam conceitualmente</p><p>"o material" e "o simbólico", sem considerar o contexto econômico, político e</p><p>histórico desde o qual estos processos adquirem sua significação. Seus resulta­</p><p>dos constituem construções coisificadas e naturalizadoras da cultura, são enfoques</p><p>estáticos de uma cultura sem sujeito, sem atividade, ou tipologias essencialistas</p><p>de grupos e sujeitos, como o "outro da diferença", sem dar conta de relações,</p><p>heterogeneidades e conflitos.</p><p>Por último, resultam problemáticas aquelas caracterizações que, a favor da</p><p>simplificação e da generalidade, diluem a heterogeneidade e as disputas ao inte­</p><p>rior das disciplinas, sem considerar a vigência de paradigmas hegemônicos ou</p><p>recuperar a necessidade de crítica sistemática aos mesmos. Parte desta problemá­</p><p>tica é recuperar conceitualmente o processo histórico conflitivo, os enfoques e</p><p>perspectivas marginais, os conceitos excluídos ou remodelados pelos enfoques</p><p>dominantes. Parte desta problemática é também reconhecer a posição e a particu­</p><p>lar inserção da epidemiologia na Medicina, e da antropologia nesta e nas Ciên­</p><p>cias Sociais.</p><p>ALGUMAS PROPOSTAS</p><p>A partir destas considerações me permito sugerir que um ponto de partida</p><p>geral de articulação só pode ser uma perspectiva crítica às reificações conceituais</p><p>e metodológicas de ambas disciplinas, que historicamente instituíram a epide­</p><p>miologia como subordinada - e em metodologia de investigação, auxiliar - à</p><p>Clínica e Saúde Pública ou à Medicina Preventiva e, por outro lado, à antropolo­</p><p>gia como intermediária ou mediadora entre práticas clínicas ou Programas de</p><p>Saúde e os conjuntos sociais subalternos, sejam estes indígenas, pobres rurais,</p><p>urbanos, etc.</p><p>Neste aspecto considero que a Antropologia deve desenvolver com mais</p><p>força um enfoque político e uma perspectiva histórica em seus estudos. Em pri­</p><p>meiro lugar, como ponto de partida, gostaria de chamar atenção para pelo menos</p><p>quatro dados de contexto:</p><p>a) No contexto de crise dos modelos de acumulação de capital e de regulação</p><p>social a nível mundial, as políticas governamentais intensificaram em nossos</p><p>países processos de concentração econômica e política que aprofundam a desi­</p><p>gualdade, a fragmentação e a exclusão social em uma escala inédita. Talvez a</p><p>crueza do modelo se expressa com claridade no crescimento do desemprego 5 , no</p><p>aumento das condições de precarização do emprego</p><p>no marco de uma contínua</p><p>perda global das condições de estabilidade laboral e de contratação e de uma</p><p>constante deterioração salarial; na intensificação da crise das economias regio­</p><p>nais e provinciais e, por fim, no aumento da pobreza em todos seus termos (novos</p><p>pobres, maior número de pobres e pobres com maior pobreza). A perspectiva não</p><p>é outra que o aprofundamento destas tendências, na medida em que a política</p><p>vigente coloca o "crescimento econômico" na maior liberalização e desregula¬</p><p>mentação dos mercados e no desenvolvimento de processos produtivos que su­</p><p>põem baixas taxas de emprego, intensificação da concentração e da competência,</p><p>baixos salários combinados com estratégias de individualização das relações so­</p><p>ciais, perda de conquistas laborais e sociais, desmantelamento das formas de or­</p><p>ganização e organização coletiva.</p><p>b) Ao mesmo tempo, o curso do atual processo de transformação do setor</p><p>saúde gira em torno da descentralização e transferência de serviços às províncias</p><p>e municípios, da restrição financeira ("desfinanciação") e na reforma do sistema</p><p>de financiamento (denominado de "autogestão"). Com crueza este processo con­</p><p>solida e aprofunda condições prévias de heterogeneidade, fragmentação e pro¬</p><p>funda desigualdade (ineficiência e iniquidade nas prestações sociais) que carac­</p><p>terizaram o modelo argentino. Neste sentido reafirma dois processos prévios: o</p><p>fortalecimento e a concentração econômico-pol í t ica do setor pr ivado, e a</p><p>mercantilização da saúde que reforça a orientação assistencialista individual do</p><p>modelo. A isto se soma, por sua vez, o desgaste, descontinuidade ou suspensão</p><p>direta de programas provinciais que incluíam algum nível de participação comu­</p><p>nitária, seja devido a crise de financiamento, seja pelo descrédito das modalida­</p><p>des de "participação" colocadas, e/ou pelo agravamento de situações de conflito</p><p>e disputas clientelísticas.</p><p>c) Neste marco de degradação das condições de vida, inexistência de políti­</p><p>cas sociais e reestruturação /desmantelamento do "setor público de saúde", "ve­</p><p>lhos" e "novos" processos de saúde-enfermidade-atenção recompõem, em um</p><p>cenário de tensão e conflito, o complexo entrecruzamento de relações de poder</p><p>entre classes, gêneros, grupos sociais e étnicos; entre instituições e conjuntos</p><p>sociais; e ao interior do "campo da saúde". Sem estender-me, a título de exemplo,</p><p>e considerando as estatísticas oficiais disponíveis, só mencionarei o crescimento</p><p>das pneumonias, tuberculose e sobretudo infeções evitáveis como o cólera, o</p><p>sarampo, etc.; o fato de que as complicações da gravidez, parto e puerpério con­</p><p>tinuam sendo a quinta causa de morte entre mulheres de 15 a 49 anos; ou de que</p><p>os acidentes são a primeira causa de morte entre os 1 e 15 anos, e a terceira entre</p><p>os 15 e 49 anos. Estes e outros processos como a "drogadição", a violência a</p><p>menores e mulheres indicam um complexo entrecruzamento de problemas dife­</p><p>renciais de caráter social, em um contexto de cada vez maior de precarização das</p><p>condições sócio-sanitárias gerais.</p><p>d) Porém, além disso, deve ser considerada uma série de processos sociais a</p><p>nível das identidades e práticas de sujeitos coletivos. Neste sentido, observa-se</p><p>uma crescente medicalização de cada vez mais áreas da vida cotidiana que trans­</p><p>forma avaliações, identidades e práticas sob o controle da unidade doméstica ou</p><p>de alguns de seus membros ou das redes de parentesco ou solidariedade, ou sob o</p><p>controle da igreja, em problemas que requerem intervenções e soluções médicas.</p><p>Parte disto é a aparição de novas enfermidades e novos tratamentos médicos</p><p>(hiperkinesis, anorexia, bulimia, etc.).</p><p>A partir destas considerações me permito sugerir como condição de articula­</p><p>ção entre a epidemiologia e a antropologia :</p><p>Em primeiro lugar, priorizar um enfoque político que aborde os processos de</p><p>saúde-enfermidade-atenção a partir das relações de poder que constituem um</p><p>campo societal, heterogêneo, fragmentário e conflitivo. Este campo implica for­</p><p>mas de desigualdade e estratificação social que incluem tanto relações econômi­</p><p>cas como relações políticas, ideológicas e culturais. Estas duas últimas resultam</p><p>particularmente pertinentes dado que sua análise permite captar mecanismos,</p><p>construções, etc. nos modos de interpretar, de definir problemas e cursos de ação</p><p>individuais e coletivos, que podem se constituir em possibilidade de mascarar os</p><p>processos e as condições da desigualdade e sua vinculação com os processos de</p><p>saúde-enfermidade-atenção; assim como colocá-los em manifesto através de</p><p>questionamento, resistências, impugnações, ou outros tipos de práticas sociais.</p><p>Cabe notar, entretanto, que a relevância destes processos de questionamento e</p><p>resistência não pode circunscrever-se apenas à análise das práticas dos conjuntos</p><p>sociais; pelo contrário, gostaria de enfatizar sua pertinência para o estudo das</p><p>práticas especializadas e profissionalizadas, incluídas aquelas enquadradas como</p><p>epidemiológicas ou antropológicas.</p><p>Em segundo lugar, é preciso aprofundar o desenvolvimento de uma perspec­</p><p>tiva dos sujeitos, que amplie os termos sócio-econômicos de "classe", "estrato",</p><p>"pobres" urbanos ou rurais. Uma perspectiva que inclua o problema do gênero,</p><p>dos grupos étnicos, das categorias de idade, como os jovens e os aposentados</p><p>(jubilados), considerando a fragmentação social em níveis grupais, comunitários</p><p>macro ou intermediário, como também no nível micro das unidades domésticas,</p><p>as redes familiares e de solidariedade, etc. O ponto aqui é não só superar a con­</p><p>cepção do coletivo como agregado de indivíduos, senão também superar o peso</p><p>de noções economicistas, tipologistas e estigmatizadoras. Neste sentido, creio</p><p>que deve se privilegiar a prática social, considerando os sujeitos como constituí­</p><p>dos a partir de relações de hegemonia, de processos históricos concretos, a partir</p><p>da lógica de suas práticas cotidianas de vida (trabalho, desocupação, consumo,</p><p>sociabilidade etc.) e nas unidades sociais em que se encontram, focalizando su­</p><p>jeitos ativos que formam parte de um campo de forças mais amplo, enfrentando</p><p>opções e desenvolvendo estratégias diversas cujo caráter deve ser problematizado.</p><p>Em terceiro lugar, é necessário reconhecer que, como coloca E. Menéndez,</p><p>os problemas de saúde, os padecimentos e danos, comprometem o centro da</p><p>cotidianeidade, constituindo eixos fundamentais na construção da subjetividade</p><p>e da reprodução de qualquer sociedade. Neste sentido são fatos sociais frentes</p><p>aos quais são desenvolvidas representações e práticas, incluída a construção de</p><p>um saber técnico e especializado, profissionalizado. (Menéndez, 1992)</p><p>Fundamentamos, assim, a proposta de indagar, segundo uma perspectiva his­</p><p>tórica e política, as representações e práticas sociais, as definições locais dos</p><p>grupos, seu modo de problematizar, definir e estabelecer cursos de ação. Nesta</p><p>linha, mais que avaliar condições de "risco", categoria problemática, considero</p><p>necessário estudar os processos e condições que fragilizam os sujeitos e grupos,</p><p>incluindo o conjunto de suas relações e condições econômicas, sociais, políticas,</p><p>ideológicas e culturais de vida.</p><p>Porém, além disso, é preciso incluir na análise as condições de resposta co­</p><p>letiva aos problemas de saúde e de vida, as estratégias individuais e coletivas de</p><p>proteção e de cuidado, considerando não só aquelas referidas à saúde-enfermida¬</p><p>de, senão também aquelas vinculadas a formas coletivas de organização de iden­</p><p>tidades, de reivindicações ou direitos sociais e políticos. A multiplicidade de prá­</p><p>ticas e discursos, a disputa de sentidos em torno de problemáticas como as do</p><p>HIV-AIDS ou da "droga" devem também ser objeto de análise. Isto é parte da</p><p>forma "objetiva" que assume a enfermidade e sua distribuição desigual. Neste</p><p>processo creio possível reconsiderar categorias médico-epidemiológicas e sócio-</p><p>antropológicas.</p><p>Em quarto</p><p>lugar, devemos nos posicionar fora de falsas dicotomias entre</p><p>métodos qualitativos e quantitativos ou entre o nível micro e macro social. O</p><p>fundamental é como se define o problema segundo uma perspectiva teórica, é daí</p><p>que resultarão as possibilidades e alternativas metodológicas, - se primeiro são</p><p>utilizadas técnicas como as de história de vida, observação com participação, e</p><p>depois questionários auto-administrados ou si o desenho é de survey; se o mate­</p><p>rial antropológico é prévio e serve para construir hipóteses de trabalho ou mode­</p><p>los analíticos, ou si é posterior a um estudo quantitativo e permite aprofundar</p><p>aspectos emergentes, etc. O problema é construir categorias de análise que per­</p><p>mitam dar conta e explicar; tudo dependerá dos desenhos de investigação a partir</p><p>do "como" do problema.</p><p>A partir de um enfoque político me interessa por último destacar que o cará­</p><p>ter do objeto de estudo, e o contexto de agravamento dos problemas acima apon­</p><p>tados, impõem a necessidade de um compromisso de produzir desenhos que per­</p><p>mitam um conhecimento que, além de dar conta das problemáticas e condições</p><p>de saúde-enfermidade-atenção, possibilite a seus protagonistas um processo de</p><p>reflexão e construção de ferramentas de controle, apropriação e modificação de</p><p>suas condições de vida. Portanto, os desenhos devem conter os modos de inter­</p><p>venção dos sujeitos de estudo nos distintos níveis da investigação.</p><p>BIBLIOGRAFIA</p><p>AGGLETON, R (1989). Perverts, Inverts and Experts: The Cultural Production of an</p><p>AIDS Research Paradigm. In Aggleton, P., Social Representation, Social Practice.</p><p>Nova York, London: The Falmer Press.</p><p>ALMEIDA, N. (1992). A Clinica e a Epidemiologia. Salvador, Rio de Janeiro: APCE-</p><p>ABRASCO</p><p>ALMEIDA, N. (1992). Por una Etnoepidemiología (esbozo de un nuevo paradigma</p><p>epidemiológico). In Cuadernos Médico Sociales, Nº 62, Rosario.</p><p>BIBEAU, G. (1993). ¿Hay una enfermedad en las Américas? Otro camino de la</p><p>antropología médica para nuestro tiempo. In Primer Simposio Internacional de cul­</p><p>tura y salud. La cultura de la salud en la construcción de las Américas. VI Congreso</p><p>de Antropología en Colombia. Instituto Colombiano de Antropología. Vol. 1.</p><p>BROWN, P. J. (1992). 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Nova</p><p>York: Greewood Press, NY.</p><p>NOTAS</p><p>1 Me refiro a programas tais como os de HIV-AIDS da OMS, os de Saúde Reprodutiva da</p><p>OMS e fundações internacionais.</p><p>2 Na Argentina alguns programas de pós-graduação, como o Mestrado em Saúde Pública da</p><p>UBA e outros mestrados de centros privados incluem módulos de antropologia.</p><p>3 Creio que isto deveria ser parte de um estudo específico. No caso da Argentina só posso</p><p>mencionar alguns estudos como o Centro de Estudos Sanitários e Sociais da Associação Médica de</p><p>Rosário.</p><p>4 O programa inclui duas linhas de investigação: profissionais de saúde (médicos, pessoal de</p><p>enfermaria e de administração); y mulheres jovens de 15 a 35 anos de setores populares da zona sul</p><p>da cidade de Buenos Aires. Se realiza com o apoio de UBACyT y CONICET. Implementa um</p><p>enfoque político do problema, como cenário conflitivo constituído a partir de relações de hegemonia.</p><p>A primeira etapa teve como objetivo estudar, na construção social da HIV-AIDS, as tensões</p><p>conceituais e, em particular, os aspectos de normatização e controle social.</p><p>5 Na Argentina o aumento de uma taxa de 12,2% em maio/94 para uma ainda não oficialmen­</p><p>te reconhecida taxa de 18% em abril/95 representa um incremento de mais de 60% no número de</p><p>desocupados para o conjunto das 25 cidades em que se realiza a Encuesta Permanente de Hogares.</p><p>REPENSANDO OS ESTUDOS</p><p>SOBRE REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS</p><p>EM SAÚDE/DOENÇA</p><p>Paulo César Alves</p><p>Miriam Cristina Rabelo</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Dentre o conjunto de trabalhos na área de saúde que mais têm procurado</p><p>concretizar novas (ou revitalizadas)</p><p>abordagens teórico-metodológicas, destacam-</p><p>se aqueles que estão voltados para o estudo de "representações e práticas". É</p><p>nessa linha que se insere o presente artigo. Mais especificamente, pretende apre­</p><p>sentar alguns dos principais dilemas e controvérsias enfrentados por antropólo­</p><p>gos e outros cientistas sociais quando, nos seus trabalhos, tratam das chamadas</p><p>"representações e práticas" do fenômeno saúde/doença. Não procuramos fazer</p><p>uma revisão bibliográfica mas apenas identificar algumas questões teóricas e</p><p>metodológicas gerais. Acreditamos que o delineamento dessas questões é de fun­</p><p>damental importância para que possamos compreender alguns dos pressupostos</p><p>sobre os quais repousam os estudos produzidos nessa área e os problemas que</p><p>trazem para uma compreensão dos modos pelos quais os indivíduos vivenciam a</p><p>doença, formulam sentidos e desenvolvem práticas conjuntas para lidar com ela.</p><p>Os trabalhos sobre representações e práticas em saúde/doença se multiplica­</p><p>ram no Brasil nas últimas duas décadas e sua contribuição é, sem dúvida, inesti­</p><p>mável: têm ampliado nosso entendimento das matrizes culturais sobre as quais se</p><p>erguem os conjuntos de significados e ações relativos a saúde e doença, caracte­</p><p>rísticos de diferentes grupos sociais, e tem servido, em grande medida, de</p><p>contraponto aos estudos epidemiológicos que tendem a tratar o tema "doença e</p><p>cultura" em termos de uma relação externa, passível de formulação na linguagem</p><p>de "fatores condicionantes".</p><p>Um traço essencial dos trabalhos sobre "representações e práticas" é consi­</p><p>derar que a doença se constitui também e principalmente em significação. Na</p><p>medida em que tomam o discurso dos indivíduos como porta de entrada para esse</p><p>universo de significações - pressupondo, assim, que a subjetividade de quem fala</p><p>entra de alguma forma em cena - e que reconhecem, ao menos implicitamente, o</p><p>caráter polissêmico das palavras utilizadas no discurso sobre a enfermidade, ter¬</p><p>minam por utilizar tanto certas concepções hermenêuticas quanto métodos quali­</p><p>tativos de análise. Entretanto, conforme procuramos mostrar na discussão que se</p><p>segue, ao fazê-lo não se desprendem de uma concepção estrutural. Os pressupos­</p><p>tos desta ficam patentes na forma como é abordada a relação entre representações</p><p>e práticas.</p><p>RUMO A NOVAS ALTERNATIVAS AO ESTUDO DAS</p><p>REPRESENTAÇÕES E PRÁTICAS</p><p>Em linhas gerais a abordagem adotada nos trabalhos aqui referidos é marcada</p><p>pela idéia de uma nítida relação de determinação das representações sobre as</p><p>práticas, de tal forma que essas últimas são vistas como passíveis de ser deduzidas</p><p>do sistema construído de representações. Assim as práticas em saúde e doença</p><p>são tomadas como emanando de uma estrutura de significados subjacente (que,</p><p>como não poderia deixar de ser, o investigador constrói a partir do contato com</p><p>práticas temporal e espacialmente circunscritas). Em grande medida os estudos</p><p>tendem a enfatizar o delineamento de modelos fechados de significação (do cor­</p><p>po, da saúde e doença) as expensas de uma compreensão dos processos de cons­</p><p>trução mesma de significado.</p><p>A essa cisão, operada pela teoria, entre representações e práticas, correspon­</p><p>dem outras dicotomias clássicas das ciências sociais, como estrutura x ação, langue</p><p>x parole, objetivo x subjetivo e fins x meios no domínio da teoria da ação. Na raiz</p><p>dessas dicotomias e do princípio referido acima de que as práticas constituem</p><p>efeito ou atualização (sempre parcial, incompleta ou efêmera) de um tecido</p><p>subjacente de representações está a clássica dualidade cartesiana entre mente e</p><p>corpo. É a vigência dessa dualidade nas ciências sociais que explica a prioridade</p><p>conferida em boa parte das teorias a linguagem, cognição ou representação, en­</p><p>quanto associados ao domínio do mental.</p><p>Mais recentemente estes pressupostos tem sido alvo de severas críticas como</p><p>atestam os trabalhos de Hans Joas (1996), Thomas Csordas (1990, 1993, 1994),</p><p>Michael Jackson (1989, 1996) e Paul Stoller (1989, 1997), entre outros. Embora</p><p>formuladas inicialmente no contexto de debates específicos (sociolinguística, teo­</p><p>ria da ação, estudos feministas, estudos sobre performance e ritual, antropologia</p><p>da saúde), essas críticas estendem-se aos próprios fundamentos metateóricos das</p><p>ciências sociais. A partir da releitura de certos autores clássicos, particularmente</p><p>da fenomenologia e pragmatismo, como Merleau-Ponty, Heidegger, George Mead,</p><p>John Dewey e Charles Peirce, vários cientistas sociais contemporâneos têm apon­</p><p>tado para a necessidade de se re-elaborar as relações entre pensamento e ação;</p><p>consciência e corpo; cultura e individualidade. O conceito de experiência tem</p><p>sido desenvolvido como campo em que se entrecruzam essas dimensões, ofere¬</p><p>cendo assim caminho interessante para uma possível superação das dicotomias</p><p>clássicas. Dois elementos centrais estão presentes e orientam boa parte das análi­</p><p>ses contemporâneas sobre experiência: uma discussão sobre o corpo enquanto</p><p>fundamento da experiência e da cultura e a idéia de intersubjetividade, enquanto</p><p>alternativa a oposição entre objetivismo e subjetivismo.</p><p>RECUPERANDO OS CONCEITOS DE</p><p>CORPOREIDADE E AÇÃO</p><p>Ao privilegiar o estudo da experiência, muitos autores buscam recuperar a</p><p>dimensão vivida da cultura: dos símbolos, das crenças, das regras e dos códigos</p><p>que supostamente regem os comportamentos. O primeiro passo nessa direção é</p><p>reconhecer a prioridade da prática, da esfera do fazer e agir, sobre o pensamento</p><p>e a reflexão: é o "eu posso" e não o "eu penso" que orienta a relação cotidiana dos</p><p>indivíduos com seu meio (Husserl, 1970; Schutz, 1973; Merleau-Ponty, 1994;</p><p>Peirce, 1980; Dewey, 1980), que transforma o contexto circundante em uma situ­</p><p>ação marcada pela presença de objetos (sejam obstáculos, meios ou mesmo fins</p><p>almejados). Ora, colocar o acento sobre a domínio da prática é, em grande medi­</p><p>da, resgatar o corpo enquanto fundamento de nossa inserção prática no mundo. É</p><p>porque posso converter meu corpo (ou partes dele) em instrumento que os outros</p><p>objetos podem, por sua vez, tornar-se instrumentos para mim: afinal transformar</p><p>algo em instrumento que uso é anexá-lo ao meu corpo, de modo a fazer dele uma</p><p>extensão de minhas capacidades ou habilidades corporais. Em primeiro lugar,</p><p>isso significa, de fato, que mais que uma simples ferramenta a meu serviço, o</p><p>corpo é condição e possibilidade para que as coisas se convertam em meios ou</p><p>objetos para mim. Antes de constituir um objeto - nosso corpo que miramos no</p><p>espelho, o corpo do outro cuja figura avaliamos, ou o "organismo" sobre o qual</p><p>intervêm as ciências biomédicas - o corpo é dimensão do nosso próprio ser. Em</p><p>segundo lugar, significa também que para que o mundo se me apresente como</p><p>povoado de objetos é preciso que eu já pertença ao mundo, já esteja inserido nele</p><p>enquanto corpo. Há, portanto, uma relação originária entre consciência e mundo</p><p>- anterior a constituição mesma dos objetos - que só pode ser compreendida</p><p>quando recupero a mediação do corpo. Esta relação é pré-reflexiva ou pré-objeti¬</p><p>va: aponta para o fato de que nossa inserção (corporal) no mundo - da cultura, da</p><p>convivência com outros - antecede a atitude reflexiva que constitui esse mundo</p><p>como conjunto de objetos (e a nós mesmos como sujeitos) e a cultura como o</p><p>conjunto de representações acerca desses objetos.</p><p>Esse ponto nos permite colocar em novos termos a questão da experiência</p><p>da doença. Ao invés de situarmos a análise no universo já constituído de repre­</p><p>sentações ou objetificações - doença como castigo, feitiço, ação demoníaca,</p><p>disfunção orgânica - nos conduz a problematizar o processo mesmo em que a</p><p>vivência do sentir-se mal se constitui e ganha expressão (cf. Csordas, 1990). A</p><p>questão não é identificar o momento em que a cultura se faz presente no delinea­</p><p>mento da experiência da doença (ou partir do pressuposto de que há um momento</p><p>anterior a ação da</p><p>cultura), pois toda experiência já é em si cultural. Trata-se de</p><p>considerar que o modo como os indivíduos vivenciam a aflição expressa uma</p><p>síntese (pré-reflexiva) entre corpo e cultura que se dá anterior a qualquer repre­</p><p>sentação sobre a doença, e que muitas vezes confronta o sujeito do sofrimento</p><p>como algo inesperado, ocorrido sem interferência de sua vontade ou entendimen­</p><p>to. Este ponto tem implicações importantes para o estudo de contextos terapêuticos,</p><p>na medida em que permite formular a questão da transformação da experiência</p><p>(potencialmente produzida nestes contextos) não mais como simples substitui­</p><p>ção de representações sobre a aflição e suas causas, mas enquanto o desenvolvi­</p><p>mento de um novo modo de colocar-se frente a doença que envolve uma síntese</p><p>corporal pré-reflexiva. O interesse pela dinâmica de constituição e transformação</p><p>da experiência via terapia colocar a atenção sobre os meios, recursos e sobretudo</p><p>os processos que conduzem a essa síntese corporal.</p><p>Toda história de doença e tratamento revela, de fato, um movimento, mais</p><p>ou menos pronunciado, conforme o caso, entre o velho e o novo. Esse movimen­</p><p>to, que envolve processos de resistência, remanejamento e mudança de hábitos,</p><p>dificilmente pode ser compreendido em toda sua complexidade a partir de um</p><p>enfoque centrado nas "representações e práticas". Um limite claro imposto por</p><p>este enfoque está na compreensão mesma do que vem a ser o hábito e,</p><p>consequentemente, de como hábitos são adquiridos e mudam. Como todos sabe­</p><p>mos, a experiência do adoecer tanto atesta para o poder de hábitos arraigados,</p><p>que resistem a incorporação efetiva de novas representações no delineamento do</p><p>comportamento, quanto aponta para o processo de formação de novos hábitos.</p><p>Longe de revelar o poder das representações em sustentar e/ou modificar os com­</p><p>portamentos, essas experiências apontam para o poder do corpo, ou de um saber</p><p>que é radicado no corpo (e não no intelecto). Na base da dificuldade, enfrentada</p><p>por muitos doentes, de mudar seus comportamentos a partir das prescrições e</p><p>explicações médicas, não está tanto uma dificuldade de entender tais prescrições,</p><p>mas a experiência de uma resistência imposta pelo corpo, enquanto assento do</p><p>hábito. Da mesma forma, na base dos processos de aquisição de hábitos não está</p><p>o aprendizado intelectual de novas representações, mas o desenvolvimento de</p><p>novas sínteses corporais ou modos de atentar com e para o corpo. Aqui o esque­</p><p>ma que confere prioridade a cognição sobre a ação, ou às representações sobre as</p><p>práticas, revela-se claramente insuficiente. Na esfera do hábito, diz Merleau-Ponty</p><p>(1994: 200), "é o corpo que compreende". O hábito expressa um conhecimento</p><p>radicado no corpo, aponta para um processo em que incorporamos, enquanto</p><p>prolongamento do nosso corpo, um certo tipo de situação, de tal modo que ao</p><p>agir experimentamos um acordo entre o que visamos e o que nos é dado. Assim,</p><p>situar determinada ação no plano do hábito é dizer que para sua efetivação não é</p><p>necessário colocar reflexivamente um problema ou sua resolução.</p><p>Ao recuperar o conceito de hábito na crítica ao modelo das "representações</p><p>e práticas", entretanto, é preciso evitar estabelecer uma divisão rígida entre ação</p><p>habitual e ação racional. Essa é uma questão bastante importante nos estudos</p><p>sócio-antropológicos da saúde e doença, onde o hábito foi por muito tempo trata­</p><p>do como empecilho a adoção de uma atitude racional com relação a doença e</p><p>seus cuidados. Assim as condutas do paciente e do médico apareciam em muitos</p><p>estudos das décadas de 70 e 80 enquanto claramente contrapostas: a primeira</p><p>fechada no hábito, perpassada pela emoção e pouco afeita a reflexão; a segunda,</p><p>guiada pela ciência, neutra e eminentemente reflexiva, portanto, aberta a novas</p><p>informações e a refutação de saberes cristalizados. Da mesma forma, o conjunto</p><p>de ações adotadas pelos doentes para lidar com a enfermidade - os chamados</p><p>itinerários terapêuticos - eram tratados como desvios mais ou menos pronuncia­</p><p>dos de um certo modelo universal de racionalidade. A substituição desse quadro</p><p>interpretativo pela idéia de que as condutas dos pacientes podiam ser explicadas</p><p>ou seriam efeito de um tecido subjacente de representações, organizado de modo</p><p>coerente enquanto sistema, não contribuiu muito para superar a dicotomia entre</p><p>ação habitual e ação racional no plano de uma teoria da ação. Em muitos casos</p><p>apenas levou a que a "irracionalidade" detectada nas práticas dos leigos fosse</p><p>localizada na tradição (pensada como sistema de representações) e não mais no</p><p>indivíduo. Em outros casos ainda, produziu a visão de que, sendo em última</p><p>instância guiada por representações inconscientes, a ação teria um vínculo ape­</p><p>nas contingente com a situação em que se desenrola. Nesse sentido, estudar as</p><p>práticas relativas a saúde e doença seria praticamente equivalente a estudar o</p><p>sistema de representações, do qual as práticas descreveriam instâncias indivi­</p><p>duais. Neste caso, a relação entre ação habitual e ação racional permaneceu</p><p>intocada, na medida em que a ação como um todo foi jogada pela teoria a um</p><p>plano secundário. Uma das consequências mais patentes do enfoque das "repre­</p><p>sentações e práticas" foi, de fato, um descaso pelo domínio da ação, enquanto</p><p>teoricamente relevante. Aqui nos deteremos em um exame criterioso desse domí­</p><p>nio, enquanto caminho para desenvolvermos uma crítica às análises de "repre­</p><p>sentações e práticas".</p><p>Esboçar as relações entre hábito e ação racional a partir de uma análise críti­</p><p>ca situada no âmbito da própria teoria da ação, conduz a uma revisão dos pressu­</p><p>postos cartesianos que tem orientado essa teoria desde suas formulações mais</p><p>antigas. O hábito chama atenção para uma forma de compreender o mundo bem</p><p>distinta de uma apreensão intelectual que produz representações: é uma compre­</p><p>ensão que consiste em um modo próprio de ajustar-se ou engajar-se em determi­</p><p>nada situação, que é logrado com o corpo. Esse modo de compreensão, entretan¬</p><p>to, longe de configurar uma instancia ou tipo único, é fundamento necessário</p><p>para toda ação, inclusive a ação racional guiada reflexivamente. Dificilmente ao</p><p>agir o indivíduo tem um controle ou domínio reflexivo de todas as fases de sua</p><p>ação, por mais próxima que ela seja do modelo weberiano de racionalidade com</p><p>relação a fins. Ao atuar com vistas a determinado fim o ator experimenta um</p><p>remanejamento de suas capacidades corporais que nem é simples automatismo</p><p>(porque se dá a luz do seu projeto), nem se produz sob o comando da reflexão:</p><p>remete a uma intencionalidade operante a nível do corpo.</p><p>Da mesma forma é preciso evitar colocar a análise frente a alternativa de</p><p>explicar a ação segundo o modelo do hábito ou a partir do domínio exclusivo do</p><p>projeto consciente (ou reflexivo). No primeiro caso, o projeto aparece como sim­</p><p>ples racionalização de algo que procede a um nível infra-linguístico, enquanto</p><p>operação de um senso prático ou conjunto de disposições corporificadas. A refe­</p><p>rência aqui é ao conceito de habitus de Bourdieu (1987), que parece petrificar ou</p><p>congelar nossa relação pré-reflexiva com o mundo da cultura: para Bourdieu esta</p><p>relação está apoiada em "estruturas estruturantes" que atuam enquanto geradoras</p><p>da práticas. No segundo caso, domina uma ênfase na ação enquanto resultado de</p><p>uma atitude de avaliação e cálculo frente ao meio. Nesse modelo, a figura do</p><p>indivíduo enquanto agente consciente (reflexivo) tende a ser hipostasiada. Aqui</p><p>se encaixam muitos teóricos da escolha racional.</p><p>A relação entre projeto e hábito precisa ser formulada de modo mais dinâmi­</p><p>co: ao invés de pólos excludentes constituem dimensões que frequentemente se</p><p>imbricam no processo de agir. Os projetos de um ator conduzem a uma reorgani­</p><p>zação ativa tanto do corpo quanto da situação, que pode se cristalizar em novos</p><p>hábitos; hábitos constituidos frequentemente remetem a projetos</p><p>passados. Por</p><p>outro lado, ao agir o ator não está simplesmente executando o que já determinou</p><p>como fim através da mobilização de meios em uma determinada situação. Fins e</p><p>meios não estão um para o outro enquanto fases distintas da ação, uma dominada</p><p>pela reflexão desencarnada (e, portanto, desenraigada da situação) e outra marcada</p><p>pela manipulação ativa da situação; a primeira domínio das representações, a</p><p>segunda, das práticas enquanto execução. Tratam-se de dois elementos que exer­</p><p>cem uma influência recíproca um sobre o outro, de modo que é no processo</p><p>mesmo de agir que o projeto (inicialmente vago e impreciso, formulado sobre um</p><p>amplo fundo de indeterminação) adquire contornos mais claros, muda de rumo e</p><p>por vezes é mesmo redesenhado (Schutz, 1973). Isso significa dizer que os fins</p><p>n u n c a são fo rmulados independen tes da s i tuação , ganham relevo e são</p><p>tematizados no próprio curso de nosso engajamento prático na situação. Há um</p><p>vínculo mais estreito e original entre a consciência e a situação que é dado pelo</p><p>fato de nossa encarnação, de sermos um corpo. Por isso, observa Joas, a situa­</p><p>ção não é simplesmente algo contingente sobre a ação, mas é constitutiva dela</p><p>(1996: 160).</p><p>É a partir desses termos que o autor recoloca o interação entre as instâncias</p><p>do pré-reflexivo e reflexivo no delineamento da ação: "De acordo com essa visão</p><p>alternativa, a definição de fins não se dá por um ato intelectual prévio a ação</p><p>mesma, mas é, ao invés, o resultado de uma reflexão sobre aspirações e tendên­</p><p>cias que são pré-reflexivas, e que tem sido já sempre operativas. Neste ato de</p><p>reflexão, nós tematizamos aspirações que normalmente atuam sem que tenha­</p><p>mos consciência delas. Mas aonde exatamente estão localizadas essas aspira­</p><p>ções? Estão localizadas no nosso corpo. São as capacidades do corpo, seus há­</p><p>bitos e modos de relacionar com o meio que formam o pano de fundo de todo ato</p><p>de definição de fins..." (Joas, 1996: 158). Procurando explicar a entrada em cena</p><p>da reflexão - ou da definição reflexiva de fins - sobre uma base prévia de expe­</p><p>riência pré-reflexiva, Joas argumenta: "Se adotarmos o entendimento da</p><p>intencionalidade que estou avançando aqui... a definição de fins torna-se o re­</p><p>sultado de um situação em que o ator se encontra impedido de prosseguir com</p><p>seus modos de ação guiados pré-reflexivamente. Nessa situação, ele é forçado a</p><p>adotar uma instância reflexiva sobre suas aspirações pré-reflexivas" (Ibid., 1996:</p><p>162). A criatividade da ação, expressa em nossa capacidade de formular fins ou</p><p>projetos, não se contrapõe ao enraizamento da ação na situação, no hábito, nas</p><p>aspirações e disposições corporais pré-reflexivas, mas, ao contrário, se constrói a</p><p>partir destes.</p><p>Essa discussão complexifica, sem dúvida, nosso entendimento da ação e,</p><p>ao fazê-lo, questiona profundamente o esquema que confere prioridade às re­</p><p>presentações sobre as práticas. Ao apontar para um saber ou modo de compre­</p><p>ensão radicado no corpo - uma capacidade pré-reflexiva do corpo ajustar-se a e</p><p>engajar-se ativamente na situação - coloca em cheque a visão intelectualista de</p><p>um tecido dominante de idéias ou representações que dá forma às práticas.</p><p>Entretanto, o modelo aqui apresentado não pretende simplesmente substituir o</p><p>termo representação pela idéia de disposições corporais arraigadas, estas últi­</p><p>mas tomadas como determinantes das ações. Se o fizesse permaneceria preso</p><p>aos pressupostos da perspectiva estrutural, tendo apenas deslocado a determi­</p><p>nação do domínio das idéias para o domínio do habitus. Trata-se antes de apon­</p><p>tar para o caráter processual (temporal) e essencialmente situado da ação, ou</p><p>seja para a dialética que toda ação inaugura entre o corpo como ponto de vista</p><p>e o corpo como ponto de partida (Sartre, 1997), entre o fundo sempre presente</p><p>do hábito e os elementos tematizados no projeto, entre a experiência pré-refle­</p><p>xiva de ser-em-situação e a definição reflexiva de novas situações (fins). Ao</p><p>incorporarmos essa discussão aos estudos em antropologia médica, a atenção é</p><p>deslocada da doença como fato (seja dado empírico ou signo) para o curso da</p><p>doença como experiência. Esse é um campo de investigação que só se estabele­</p><p>ce plenamente quando a relação entre representações e práticas é sujeita a críti­</p><p>ca e reformulação.</p><p>A discussão acima nos remete claramente para o segundo elemento definidor</p><p>do conceito experiência: a sua dimensão intersubjetiva. Postular uma relação</p><p>fundante entre ser e situação, dada pela nossa inserção corporal no mundo é, de</p><p>fato, afirmar que o estar em meio a presença encarnada de outros é também origi­</p><p>nal ou anterior a qualquer processo de objetificação (e subjetificação), condição</p><p>mesma para o desenrolar de tais processos reflexivos. Assim, o encontro com o</p><p>outro não é realidade contingente a ação individual - os outros não são simples­</p><p>mente levados em consideração quando se trata de realizar meus fins em uma</p><p>situação marcada pela sua presença ativa - constituem comigo um campo do qual</p><p>emergem nossos fins e que possibilita a coordenação de nossos esforços para</p><p>intervir na realidade. Merleau-Ponty refere-se a esse campo enquanto uma socia¬</p><p>bilidade originária. É a partir dessa sociabilidade que, na visão de Mead (1972),</p><p>o indivíduo pode desenvolver a capacidade de se constituir enquanto um self.</p><p>Se o social não é soma de subjetividades isoladas tampouco é a realidade</p><p>objetiva - estrutura simbólica; modo de produção, integração entre sistemas so­</p><p>cial, cultural e de personalidade ou mesmo sistema de disposições duráveis -</p><p>proposta pelas abordagens de cunho estrutural. A classe e a nação, - observa</p><p>Merleau-Ponty - e poderíamos acrescentar a família, a religião, o gênero, "não</p><p>são fatalidades que submetam o indivíduo do exterior, nem tampouco valores</p><p>que ele ponha do interior. Elas são modos de coexistência que o solicitam"</p><p>(Merleau-Ponty, 1994: 487). Estamos continuamente respondendo a essas solici­</p><p>tações, embora apenas em situações específicas, respostas usualmente irrefleti¬</p><p>das e confusas convertam-se em tomadas de posição refletidas; relações que eram</p><p>apenas vividas transformem-se em engajamento explícito, aspirações pré-refle¬</p><p>xivas (fundadas na minha inserção corporal no mundo) convertam-se em fins</p><p>com os quais explicitamente me comprometo e frente aos quais demando dos</p><p>outros uma tomada clara de posição.</p><p>O mundo que partilho com outros não é a realidade externa e impessoal que</p><p>a ciência constitui e sobre a qual se volta com uma atitude de aparente neutralida­</p><p>de. É fundamentalmente um mundo familiar sobre o qual atuamos e frente ao</p><p>qual adotamos o que Husserl chama de atitude natural. Imersos na atitude natural</p><p>assumimos que os objetos existem independente de nossa perspectiva, vontade</p><p>ou conhecimento - são os mesmos para todo e qualquer indivíduo - e impõem</p><p>resistência aos nossos projetos e intervenções práticas. Assumimos que nossas</p><p>ações podem e são frequentemente repetidas, independentemente das variações</p><p>no espaço e tempo (o que Schutz chama da idealização do "posso fazê-lo de</p><p>novo" ) e que nossos pon tos de vista e os dos outros são perfei tamente</p><p>intercambiáveis. Marcada por uma série de pressupostos ou idealizações, a atitu¬</p><p>INTERSUBJETIVIDADE, MUNDO DA VIDA COTIDIANA</p><p>E ESTOQUE DE CONHECIMENTO</p><p>de que adoto no mundo da vida cotidiana permite que me situe nesse mundo com</p><p>familiaridade e que intervenha ativamente nele.</p><p>A atitude natural é totalmente determinada por um motivo pragmático: aci­</p><p>ma de tudo o mundo cotidiano é o mundo da praxis. O conhecimento que adquiro</p><p>e utilizo no dia a dia está atrelado a interesses práticos, "devo compreender meu</p><p>mundo da vida no grau necessário para poder atuar nele e operar sobre ele"</p><p>(Schutz e Luckmann, 1973: 28). Este estoque de conhecimento, que utilizo para</p><p>me orientar na situação e resolver os problemas que se me defrontam, é heterogê­</p><p>neo: comporta</p><p>desde um conhecimento radicado no corpo (que inclui habilidades</p><p>corporais adquiridas no passado), não acessível discursivamente, até uma série</p><p>de receitas genéricas para lidar com um conjunto variado de situações. Para Schutz</p><p>o estoque de conhecimento é formado ao longo do percurso biográfico do indiví­</p><p>duo. Assim, é aberto a retificações ou corroborações de experiências por vir, ou</p><p>seja, caracteriza-se pela fluidez e processualidade. A configuração que o estoque</p><p>de conhecimento assume a cada momento é determinada pelo fato de que os</p><p>indivíduos não estão igualmente interessados em todos os aspectos do mundo ao</p><p>seu alcance, é o interesse prático que dita que o que é relevante ou não na situa­</p><p>ção.</p><p>Elaborar as relações entre representações e práticas a luz dessas considera­</p><p>ções nos conduz a concluir que enquanto referidas ao estoque de conhecimento</p><p>as representações estão longe de ser um sistema fechado que determina as práti­</p><p>cas: constituem um conjunto aberto e heterogêneo que comporta zonas de impre­</p><p>cisão e elementos contraditórios e que é continuamente refeito - ampliado, des­</p><p>locado, problematizado - ao longo das práticas e relações dos indivíduos com</p><p>seu meio e entre si. Expressos ou sedimentados no estoque de conhecimento</p><p>estão uma série de diálogos e interações com outros que marcam o percurso bio­</p><p>gráfico do indivíduo. Só nesses termos podemos entender porque a doença, ao</p><p>romper com o caráter dado ou pressuposto de esferas da vida cotidiana, coloca</p><p>em questão elementos do estoque - daí as dúvidas, incertezas e vacilações que</p><p>marcam muitas das experiências cotidianas de adoecer e lidar socialmente com a</p><p>enfermidade. Só nesses termos podemos entender porque, uma vez que sintam-se</p><p>capazes de colocar a doença sob controle, os indivíduos suspendam o processo</p><p>de questionamento e problematização ao qual haviam se dedicado.</p><p>Há muito pouco espaço para incorporar um conceito como o de estoque de</p><p>conhecimento, o qual confere prioridade ao processo prático de aquisição e utili­</p><p>zação do saber, nas discussões sobre "representações e práticas". Nestas as repre­</p><p>sentações em saúde e doença são tomadas como organizadoras ou determinantes</p><p>das práticas e, neste sentido, tendem a ser vistas como compondo um texto cultu­</p><p>ral anônimo e fechado. O domínio dessa metáfora textual implica uma ênfase</p><p>excessiva na coerência interna das idéias, valores e práticas de determinado gru­</p><p>po social. Resultado disso é a pouca abertura de boa parte dos estudos para o</p><p>tratamento das incoerências, ambiguidades e indecisões que marcam processos</p><p>de interpretar e conviver com a doença, buscar e avaliar tratamento. Dar atenção</p><p>aos processos interativos que se desenrolam nas situações de doença e cura mos­</p><p>tra-se especialmente relevante nas investigações sobre contextos médicos plu­</p><p>rais, em que os indivíduos percorrem diferentes instituições terapêuticas e utili­</p><p>zam abordagens por vezes bastante contraditórias de diagnosticar e tratar a doen­</p><p>ça. Aí o caráter fluido e mutável das definições formuladas para explicar e lidar</p><p>com a aflição reflete menos a operação de textos culturais fechados que a suces­</p><p>são de encontros, conversas e relações que configuram a experiência da doença.</p><p>Neste ponto para prosseguirmos a discussão sobre representações e práticas em</p><p>saúde e doença é preciso perseguir seus desdobramentos na questão relativa as</p><p>relações entre linguagem e experiência.</p><p>LINGUAGEM, DISCURSO E SIGNIFICAÇÃO</p><p>Os estudos de "representações e práticas sobre saúde/doença, medicina ou</p><p>ato terapêutico tendem a "localizar" as suas propostas interpretativas (idéia dire­</p><p>triz da hermenêutica) na linguagem e, de modo mais especial, na linguagem oral.</p><p>Há neles uma forte tendência de concentrar a análise no sentido do discurso, ao</p><p>qual é dada prioridadade sobre a situação enunciativa, entendida como as deter­</p><p>minações e contextos das pessoas, dos lugares, dos momentos e das razões que</p><p>levaram os indivíduos a proferir uma fala. Convém observar, contudo, que dife­</p><p>rentemente da linguística de inspiração saussuriana, os trabalhos situados no</p><p>enfoque aqui discutido não negam a priori a inseparabilidade entre as instâncias</p><p>do sentido e da situação enunciativa. Entretanto, a análise que empreendem da</p><p>situação enunciativa é bastante empobrecedora. Dois elementos parecem estar</p><p>presentes nessas análises, aparecendo ora isoladamente, ora de modo articulado.</p><p>Em primeiro lugar está a tendência de remeter a situação enunciativa a uma rea­</p><p>lidade estrutural outra que tem sobre ela uma caráter de determinação: relações</p><p>de classe e poder, situação de status, posições estruturais em determinado campo</p><p>social, só para citar as versões mais sociológicas do argumento. O resultado de</p><p>tal operação teórica é transformar a situação enunciativa em meio neutro e con­</p><p>tingente em que se atualizam, manisfestam, entrecuzam ou se influenciam certas</p><p>estruturas (incluindo aqui a própria linguagem). Em segundo lugar está a tendên­</p><p>cia de construir a caracterização da situação enunciativa a partir de indicadores</p><p>sociais ou variáveis genéricas, tais como idade, sexo, ocupação, classe, educação</p><p>e níveis de aspiração. A realidade vivida pelos atores é, assim, reduzida a uma</p><p>constelação de fatos sociais elementares. Em ambos os casos a situação enunciativa</p><p>é esvaziada: mero efeito de determinações expressas por generalidades "empíricas"</p><p>ou "idealidades" externas aos indivíduos, o aqui e agora do discurso não se re¬</p><p>veste de nenhuma importância analítica, é apenas o dado bruto a ser ultrapassado</p><p>pela operação teórica.</p><p>A análise do sentido do discurso - a qual se voltam as investigações sobre</p><p>representações em saúde e doença - é, por sua vez, direcionada a significação do</p><p>que é dito, ao código discursivo e, portanto, a racionalidade do sentido. Nesse</p><p>processo o que se pretende mostrar é uma realidade discursiva "essencial", co­</p><p>mum a determinados atores sociais. Em outras palavras, o discurso é visto apenas</p><p>no seu aspecto formal, como um processo de abstração; ao analisá-lo o investiga­</p><p>dor elimina o locutor, o indivíduo concreto, para reencontrá-lo em seguida como</p><p>membro genérico de modelos ou estruturas sócio-culturais. Portanto, a grande</p><p>premissa subjacente é a de que as representações são o conteúdo da consciência</p><p>que, por sua vez, é determinado por bases objetivas, materiais e/ou estruturas de</p><p>idéias. É nesse aspecto que se insere uma proposta hermenêutica. Trata-se, con­</p><p>tudo, de uma hermenêutica voltada para reconhecer e interpretar a mensagem</p><p>relativamente unívoca que o locutor (entidade abstrata) constrói apoiado em con­</p><p>textos sociais objetivos. Uma hermenêutica, portanto, "romântica" (Schleiermacher</p><p>ou Dilthey) que procura compreender o outro de forma completa e até melhor do</p><p>que ele mesmo se compreende, para descobrir no seu discurso um sentido inerte,</p><p>universal.</p><p>Uma tal abordagem torna descartável o conceito de experiência. É o discur­</p><p>so - político, religioso, de gênero, etc. - que situa o ator no mundo, cavando a</p><p>perspectiva a partir da qual emitirá toda fala e assim fazendo dele sujeito. A</p><p>linguagem constitui para os atores não apenas o mundo, mas um conjunto fecha­</p><p>do de modos de ser no mundo. Conforme observa Csordas (1994:11), na medida</p><p>em que é postulado que nada existe fora da linguagem - os sentidos que emergem</p><p>na interação já estão nela contidos - é totalmente irrelevante colocar a questão de</p><p>sua relação com a experiência: segundo esse raciocínio, em última instância só</p><p>temos acesso a linguagem, ao discurso e, portanto, a representação. A linguagem</p><p>não é mais veículo ou instrumento para representar um mundo de coisas que</p><p>existem independente dela - tal como pensado pelos empiricistas ingleses. Nos</p><p>trabalhos sobre representações e práticas domina a idéia bem mais sofisticada,</p><p>sem dúvida, de que ela é o meio que institui esse mundo e seus sujeitos. Se tal</p><p>idéia nos liberta de uma</p><p>sociedade e as questões de saúde.</p><p>É interessante observar que coube aos cursos de pós-graduação, localizados prin­</p><p>cipalmente nos departamentos e institutos de saúde pública/coletiva, medicina</p><p>social e preventiva, grande parte dessa produção 2 . Foram essas instituições que</p><p>preservaram, de certa forma, a tradição do pensamento sanitarista brasileiro em</p><p>privilegiar a explicação social do fenômeno médico.</p><p>Apesar da heterogeneidade e dinamismo da produção brasileira nessa área, é</p><p>possível indicar algumas características marcantes na maioria desses trabalhos.</p><p>Para compreendermos tais características devemos levar em consideração o pró­</p><p>prio processo de formação dos primeiros pesquisadores que tramitaram no cam­</p><p>po sócio-cultural da saúde. Em linhas gerais, um fato a ser observado é que,</p><p>conforme mencionamos acima, esses primeiros pesquisadores, com exceções,</p><p>não possuíam formação sistemática na área das ciências sociais 3 . Eram funda­</p><p>mentalmente profissionais da saúde e acadêmicos que se utilizavam (ou improvi­</p><p>savam) de algumas categorias da sociologia e, em menor escala, da antropologia.</p><p>Embora a tradição sanitarista brasileira tenha ao longo da sua história demonstra­</p><p>do uma sensibilidade às questões sociais, as instituições de ensino/pesquisa rela­</p><p>cionadas à saúde coletiva empregavam poucos cientistas sociais, ministravam</p><p>poucas disciplinas na área (com cargas horárias restritas) e a aceitação do</p><p>referencial teórico-metodológico dessas ciências resumia-se a um papel simples­</p><p>mente complementar às ciências biológicas.</p><p>Estas características só começaram a sofrer algumas modificações na déca­</p><p>da de 80. Quando a Abrasco promoveu em 1982 a Primeira Reunião sobre Ensi­</p><p>no e Pesquisa em Ciências Sociais na área de Saúde Coletiva, Marsiglia & Rossi</p><p>(1983) constataram, com base em questionário aplicado junto a 50 informantes,</p><p>que a metade dos docentes da área de ciências sociais envolvidos na pós-gradua­</p><p>ção em Saúde Coletiva tinha graduação específica em ciências sociais, sociolo­</p><p>gia ou política. Esse fato torna-se mais evidente na década de 1990. Embora</p><p>ainda se verifique uma certa improvisação e heterogeneidade na composição dos</p><p>pesquisadores da área, tem crescido o contingente de docentes/pesquisadores com</p><p>formação mais sistematizada em ciências sociais. Conforme uma pequena pes­</p><p>quisa realizada pela Abrasco durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Ciên­</p><p>cias Sociais em Saúde (Curitiba, 1995), sob a responsabilidade de Paulo César</p><p>Alves, dos 137 respondentes, professores e pesquisadores atuantes no campo das</p><p>ciências sociais em saúde, 89 (65%) obtiveram diploma em ciências sociais, so­</p><p>ciologia, antropologia ou política e apenas 9 (5,6%) tinham formação na área</p><p>biomédica (medicina, enfermagem, terapia ocupacional, farmácia/bioquímica).</p><p>A nível de pós-graduação, dos 124 respondentes, 56 (45,2%) e 53 (42,7%) pos­</p><p>suíam respectivamente mestrado e doutorado, sendo que 59 (55%) de 107 infor­</p><p>mantes realizaram pós-graduação em ciências sociais e 24 ,3% em Saúde Pública.</p><p>Apenas um contingente reduzido possui apenas cursos de especialização (8,9%).</p><p>Uma parte significativa desses professores/pesquisadores atuam a pouco tem­</p><p>po na área. Conforme o catálogo de cientistas sociais em saúde iniciado pela</p><p>Abrasco 4 por ocasião do I Encontro Brasileiro de Ciências Sociais em Saúde</p><p>(Belo Horizonte, 1993), de um total de 158 profissionais dedicados a esse campo</p><p>de atividades, apenas um reduzido contingente deles (3,7%) tinham mais de 25</p><p>anos de trabalho na área e 40 (25,3%) de 10 a 24 anos (Abrasco, 1995). Esse fato</p><p>pode também ser observado no trabalho de pesquisa realizado no Primeiro Con­</p><p>gresso (Curitiba, 1995): 23 ,5% dos profissionais tinham menos de 5 anos de ati­</p><p>vidade e 32 ,3% entre 5 a 9 anos.</p><p>É interessante também registrar que atualmente esses cientistas não se en­</p><p>contram apenas nos institutos e departamentos de medicina social, saúde pública</p><p>ou coletiva. De acordo com a enquete realizada no Primeiro Congresso, do total</p><p>de respondentes que têm alguma formação em ciências sociais, sociologia, antro­</p><p>pologia ou política (graduação ou pós-graduação), 32,4% deles estão alocados</p><p>em outras instituições de pesquisa, principalmente nos programas de pós-gradua­</p><p>ção na área das ciências sociais, cabendo destacar aqueles existentes no Rio de</p><p>Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia. Por último, é importante ressaltar que está</p><p>havendo nas faculdades (médicas ou não) uma expansão do número de discipli­</p><p>nas que tratam das ciências sociais em saúde. Conforme Marsiglia e Abate (1994),</p><p>nas pós-graduações da área de saúde essas disciplinas têm entre 36 e 144 horas,</p><p>com maior freqüência de 48 e 90 horas.</p><p>Conforme j á observado, a proliferação de acadêmicos interessados na área</p><p>das ciências sociais em saúde foi em grande parte resultado dos trabalhos produ­</p><p>zidos nos cursos de pós-graduação desenvolvidos nos departamentos e institutos</p><p>de Medicina Social ou Epidemiologia. Nessas instituições, a sociologia foi a prin­</p><p>cipal disciplina do social que se impôs nas investigações sobre o fenômeno saú­</p><p>de/doença. Contudo, os estudos sociológicos da doença e da medicina foram for­</p><p>temente influenciados pelos modelos metodológicos da epidemiologia (que no</p><p>Brasil teve um desenvolvimento bastante frutífero e dinâmico), pelas análises</p><p>discursivas do positivismo e pelas relevantes preocupações econômicas, políti­</p><p>cas e ideológicas quanto aos processos sociais relacionados a assistência à saúde.</p><p>Assim, uma orientação estritamente quantitativa e economicista incidia na leitura</p><p>sobre pontos cruciais da situação sanitária brasileira.</p><p>As ciências sociais produzidas nessas instituições de ensino e pesquisa esta­</p><p>vam direcionadas para uma análise macro-sociológica que acentuava os aspectos</p><p>estruturais na explicação dos fenômenos humanos. Nesse cenário, a abordagem</p><p>do materialismo histórico através do viés estrutural funcionalista ou histórico-</p><p>estrutural - do qual Althusser e Poulantzas são figuras emblemáticas - serviram</p><p>de parâmetro interpretativo. Desnecessário é lembrar a importância dos trabalhos</p><p>de Arouca (1975), Ribeiro da Silva (1976), Donnangelo (1979) e da influência</p><p>dos latino-americanos Juan César García (1983), Laurell (1978) e Breilh (1979)</p><p>nas dissertações, teses e relatórios de pesquisas produzidos nessas instituições.</p><p>A predominância da análise estrutural marxista no mundo acadêmico da so­</p><p>ciologia brasileira é assunto que por si só merece consideração mais detalhada e</p><p>não cabe nos limites do presente trabalho desenvolver essa discussão. Cabe notar</p><p>apenas que foi através do enfoque histórico-estrutural marxista que alguns cien­</p><p>tistas sociais brasileiros se projetaram internacionalmente. A teoria do desenvol­</p><p>vimento dependente, tal qual elaborada pelos latino-americanos, em grande parte</p><p>serviu de êmulo para tal projeção. Já nos idos dos anos 80, a perspectiva estrutu­</p><p>ral de análise social desenvolvida nos departamentos e institutos de saúde coleti­</p><p>va não se restringiu somente à abordagem marxista. O pós-estruturalismo, repre­</p><p>sentado principalmente pela figura de Foucault, passou a exercer um peso signi¬</p><p>ficativo, como demonstram, por exemplo, os trabalhos de Machado et al. (1978)</p><p>e Luz (1988). Somente na década de 90 é que outras modalidades de processos</p><p>discursivos e quadros de referência de pesquisas, inspirados por pressupostos</p><p>metateóricos diferenciados, passam a encontrar um espaço de maior legitimação</p><p>entre os estudiosos da questão da saúde. Assim, a atual década parece indicar que</p><p>os pesquisadores não apenas têm formulado novos objetos de investigação como</p><p>também têm procurado desenvolver outros enfoques teórico-metodológicos que</p><p>diferem substancialmente de uma perspectiva estrutural de análise.</p><p>O caminho traçado pelos cientistas sociais brasileiros interessados no cam­</p><p>po da saúde seguiu, portanto, uma linha de desenvolvimento que em alguns pon­</p><p>visão ingênua da realidade, conduz em última instância a</p><p>um fechamento da linguagem sobre si mesma em que tudo - o mundo real, o eu e</p><p>os outros - se originam e remetem a ela. Sob esta ótica é perfeitamente compre­</p><p>ensível a subordinação das práticas às representações nos estudos em questão.</p><p>A alternativa a esta formulação não está no retorno a idéia de que a lingua­</p><p>gem é um instrumento que utilizo para designar coisas - objetos, pessoas, rela­</p><p>ções, afetos e avaliações - que independem dela e existem por si mesmos anterior</p><p>a qualquer expressão. Diferentemente, está na proposição de que a linguagem faz</p><p>parte de um voltar-se intencional para o mundo, em que uma intenção significa¬</p><p>tiva vazia descobre e vai de encontro a significação no próprio ato de expressão.</p><p>Diz Merleau-Ponty: "A palavra, enquanto distinta da língua, é esse momento em</p><p>que a intenção significativa, ainda muda e toda em ato, revela-se capaz de incor­</p><p>porar-se a cultura, minha e de outro, capaz de me formar e de formá-lo, trans­</p><p>formando o sentido dos instrumentos culturais. Por sua vez torna-se "disponí­</p><p>vel" porque, retrospectivamente, nos dá a ilusão de que estava contida nas signi­</p><p>ficações já disponíveis, quando, na verdade, por uma espécie de astucia ela as</p><p>esposara apenas para infundir-lhes uma nova vida" (Merleau-Ponty, 1984: 136).</p><p>Alguns pontos fundamentais emergem dessa reflexão de Merleau-Ponty. Em</p><p>primeiro lugar, a idéia de que o pensamento não precede a palavra, mas realiza-se</p><p>e descobre-se nela. Em segundo, o argumento de que o sistema de significações</p><p>disponíveis em uma linguagem (langue) não determina o evento da palavra/fala</p><p>(parole): "Com efeito, se o fenômeno central da linguagem é o ato comum do</p><p>significante e significado, nós a despojaríamos de sua virtude realizando de an­</p><p>temão num céu de idéias o resultado das operações expressivas, perderíamos de</p><p>vista o passo que transpõem indo das significações já disponíveis àquelas que</p><p>estamos construindo ou adquirindo" (ibid: 139). Por fim, temos a afirmação de</p><p>um entrelaçamento necessário entre sentido e situação enunciativa: no ato da fala</p><p>tomo posse de uma significação, que não estava "já aí" em um sistema dado de</p><p>relações entre significante e significado, mas que só se torna possível pela reto­</p><p>mada e "ultrapassagem" de significações já disponíveis nesse sistema. Não é no</p><p>código abstrato ou mesmo no texto escrito que a linguagem se revela em sua</p><p>plenitude, mas no ato da fala. Compreender o dito, observa Gadamer (1977), é</p><p>retomar o movimento do significado na fala.</p><p>Nesses termos já não se pode considerar a situação enunciativa como secun­</p><p>dária com relação ao sentido, mas o campo, por excelência, em que esse se cons­</p><p>titui. A relação do sentido com a situação não é, ela mesma fortuita ou dependen­</p><p>te da situação: "A análise hermenêutica é capaz de mostrar, ao invés, que tal</p><p>relatividade com relação a situação e oportunidade constitui a própria essência</p><p>da fala. Pois nenhuma asserção tem simplesmente um significado não ambíguo</p><p>baseado em sua construção lógica ou linguística enquanto tal, mas, ao contrá­</p><p>rio, cada qual é motivada" (Gadamer, 1977:89). O sentido do que é dito não</p><p>existe em um vácuo; é antes de mais nada resposta a uma pergunta que motiva e</p><p>põe em movimento a fala. Assim podemos dizer que toda fala é sempre parte de</p><p>um diálogo em curso; seu sentido se forma e é compreendido no diálogo - idéia</p><p>que norteia também as abordagens de Bakhtin (1981) e Peirce (1980) ao estudo</p><p>da linguagem. Nestes termos já não se pode passar ao largo da dimensão referencial</p><p>da fala: ela descortina para o sujeito e para o outro um mundo de experiência que</p><p>assume contornos e torna-se real no ato mesmo da expressão. Nas palavras de</p><p>Ricoeur, "e porque existe primeiramente algo a dizer, porque temos uma expe­</p><p>riência a trazer à linguagem que, inversamente, a linguagem não se dirige</p><p>apenas para significados ideais, mas também se refere ao que é" (Ricoeur,</p><p>1987:33).</p><p>Essas considerações sobre a linguagem acenam para formas distintas de se</p><p>tratar as narrativas dos atores sobre suas aflições, matéria bruta da maioria dos</p><p>trabalhos sobre representações em saúde/doença. Se os textos nativos repousam</p><p>sobre um léxico comum de concepções revelam também o esforço dos seus auto­</p><p>res para construir um sentido coerente para suas trajetórias de aflição, em um</p><p>contexto de diálogo continuado com outros significativos. As fraturas, interrup­</p><p>ções e vozes discordantes que pontuam tais textos remontam a busca de sentido</p><p>para uma experiência que por vezes ainda está em curso e que, ao longo do seu</p><p>desdobramento, assume diferentes contornos. A experiência, na verdade, nunca</p><p>se enquadra perfeitamente nos modelos ou representações propostas para explicá-</p><p>la: há uma dinamicidade, indeterminação ou excesso de sentido em toda expe­</p><p>riência que faz com que sempre haja espaço para novas e renovadas formulações</p><p>a seu respeito.</p><p>Ora isso implica que é necessário substituir a preocupação em (re)constituir</p><p>modelos fechados de significação por uma proposta analítica de compreender as</p><p>formas temporalmente circunscritas pelas quais os atores imputam e negociam</p><p>significados para suas experiências, vivenciam dificuldades de sustentar esses</p><p>significados, delineiam e levam a cabo projetos e estratégias para se (re)situar no</p><p>mundo social dado o evento/problema da doença. Antes de mais nada um tal</p><p>empreendimento exige dos pesquisadores atenção para o transcurso temporal de</p><p>organização e reorganização do cotidiano que marca a experiência da doença.</p><p>Para finalizar a discussão cabe um comentário de cunho mais metodológico,</p><p>relativo a utilização dos "métodos qualitativos" nos estudos de representações e</p><p>práticas em saúde e doença. A preocupação dominante de grande parte desses</p><p>trabalhos, como já vimos, é de explicitar os discursos de informantes, caracteri­</p><p>zar o "perfil" de determinados grupos sociais, com o objetivo de neles se encon­</p><p>trar d e t e r m i n a d a s e s t ru tu r a s e /ou r e g u l a r i d a d e s . C o n t u d o , em t e r m o s</p><p>metodológicos, muitos desses estudos não diferem em substância das pesquisas</p><p>que almejam explicar grandes generalidades, distribuições e inter-relações de</p><p>variáveis, mediante a seleção e análise de amostras, como os surveys. O que</p><p>atualmente parece caracterizar esses tipos de investigação é que o tamanho da</p><p>amostra passou a sofrer um processo significativo de encolhimento. Nos traba­</p><p>lhos quantitativos, os fatos sociais são atributos dos indivíduos que derivam do</p><p>grupo social a que pertencem: sexo, idade, ocupação, situação sócio-econômica,</p><p>filiação religiosa, etc. O melhores exemplos de "surveys" são as pesquisas que se</p><p>utilizam de questionários estruturados como técnica principal de produção de</p><p>dados. Em contraposição, nas investigações tipo "representações e práticas" o</p><p>modo de coleta dos dados que domina são as "entrevistas em profundidade" jun­</p><p>to a um número reduzido de informantes. A forma de se pensar o social e o</p><p>processo analítico dos dados, entretanto, permanecem substancialmente os mes­</p><p>mos. Nesse aspecto, os chamados "estudos qualitativos" não se diferenciam na</p><p>sua problemática e formulações hipotéticas dos princípios quantitativos, embora</p><p>não utilizem os processos estatísticos inerentes a este método. Na maneira como</p><p>vem sendo utilizado em boa parte dos estudos sobre representações e práticas em</p><p>saúde, o método qualitativo é definido apenas em termos da técnica empregada.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Neste trabalho empreendemos uma revisão crítica dos pressupostos subja­</p><p>centes aos estudos sobre "representações e práticas" em saúde e doença. Confor­</p><p>me procuramos mostrar as questões com que se defrontam tais estudos não dife­</p><p>rem substancialmente das grandes problemáticas da teoria social contemporânea.</p><p>Não podemos esquecer um fato óbvio: a antropologia da saúde está submetida às</p><p>mesmas inquietações e interrogações</p><p>que impulsionam o conjunto da teoria so­</p><p>cial. Nesse aspecto, algumas questões colocadas por esta disciplina são tão ve­</p><p>lhas quanto a própria história da teoria social.</p><p>Na discussão aqui desenvolvida observamos que um dos grandes temas e</p><p>desafios da teoria social contemporânea diz respeito ao desenvolvimento de uma</p><p>proposta que possa superar as já tão conhecidas dicotomias entre ação e estrutu­</p><p>ra, subjetividade e objetividade, indivíduo e sociedade, corpo e mente. Analisan­</p><p>do a reprodução - e implicações - dessas dicotomias nos estudos de "representa­</p><p>ções e práticas" em saúde e doença, procuramos delinear algumas alternativas</p><p>teóricas que nos parecem acenar no sentido de sua superação. Nosso objetivo foi</p><p>tão somente dar um primeiro passo para o que deve ser um debate continuado</p><p>entre os pesquisadores atuantes no campo da antropologia da saúde.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>BAKHTIN, M. (1996). The Dialogic Imagination. Editado por M. Holquist. Austin: Texas</p><p>University Press.</p><p>BOURDIEU, P. (1987). Outline of a Theory of Practice. Cambridge: Cambridge University</p><p>Press.</p><p>CSORDAS, T. (1990). Embodiment as a Paradigm for Medical Anthropology. Ethos 18:</p><p>5-47.</p><p>CSORDAS, T. (1993). Somatic Modes of Attention. Cultural Anthropology 8: 135-156.</p><p>CSORDAS, T. (1994). Introduction: The Body as Representation and Being in The World.</p><p>In T. Csordas (ed), Embodiment and Experience: The Existential Ground of Culture</p><p>and Self. Cambridge: Cambridge University Press.</p><p>DEWEY, J. (1980). Experiência e Natureza. In Dewey, Coleção Os Pensadores. São Pau­</p><p>lo Editora Abril.</p><p>GADAMER, H-G. (1977). Semantics and Hermeneutics. In D. Linge (ed.), Philosophical</p><p>Hermeneutics: Hans-Georg Gadamer. Eerkeley: University of California Press.</p><p>HUSSERL, E. (1970). The Crisis of European Sciences and Transcendental</p><p>Phenomenology. 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Philadelphia: University of Pennsylvania</p><p>Press.</p><p>MÉDICO FERIDO:</p><p>OMOLU NOS LABIRINTOS</p><p>DA DOENÇA</p><p>Andrea Caprara</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Na obra The Philosophy of Medicine (1986), Wulff, Pedersen, e Rosemberg,</p><p>respectivamente, um clínico, um filósofo e um psiquiatra, apresentam, dentre</p><p>outros estudos, uma análise da prática médica com um enfoque hermenêutico.</p><p>Um ponto central dessa análise foi dado ao tema da "medicina mais humana",</p><p>abrindo, portanto, uma série de reflexões sobre o aspecto humano a ser levado</p><p>em consideração na medicina e destacando a necessidade de uma maior sensibi­</p><p>lidade por parte do médico frente ao sofrimento e experiência do paciente. Para</p><p>esses autores, o desenvolvimento dessa sensibilidade e a sua aplicação na prática</p><p>médica constituem o mais importante desafio da biomedicina.</p><p>Esses conceitos, também, foram desenvolvidos por Gadamer (1994), que</p><p>introduziu o conceito de médico ferido. Para esse filósofo, o restabelecimento do</p><p>equilíbrio perturbado demanda levar em consideração a experiência da própria</p><p>doença, tornando-se necessária uma medicina mais humana que implica o</p><p>surgimento da figura do médico ferido. Esta nova visão de médico implica em ser</p><p>ele consciente do sofrimento e da dor, em considerar o paciente na integridade da</p><p>sua vida e interpretar a dor e o sofrimento como signos portadores de uma dimen­</p><p>são coletiva. Portanto, o sofrimento passa a ser compreendido por parte do médi­</p><p>co, quando ele leva em consideração os aspectos da personalidade, as experiên­</p><p>cias pessoais, a família, a cultura, considerando o paciente além do ponto de vista</p><p>biológico (Cassei, 1982). Esta figura de médico ferido, no âmbito da medicina</p><p>brasileira, está sendo desenvolvida, principalmente, por pediatras, que, sensíveis</p><p>à experiência do doente, procuram criar um "espaço humano" na prática pediátrica</p><p>(Madeiro Leite, 1992).</p><p>O médico que trata do doente, levando em consideração a integridade de sua</p><p>vida, ajuda-o a atravessar o percurso da dor, facilitando, desta maneira, o</p><p>restabelecimento da saúde. Nessa perspectiva, Gadamer (1994) estabelece uma</p><p>aproximação entre essa figura de médico e àquela do psicanalista, uma vez que</p><p>no processo de transferência, encontram-se os caminhos do assistido e do analis­</p><p>ta, permitindo que o paciente encontre novamente suas próprias características 1.</p><p>A perspectiva etnográfica ajuda-nos analisar o fato de como as culturas ela­</p><p>boram o tema do médico ferido. Nelas, a dupla polaridade de figura doente com</p><p>poderes de cura, é freqüente nas representações e práticas tradicionais. Pode-se</p><p>constatar que em toda Idade Média, o enunciado "médico, ajuda a ti mesmo"</p><p>estabelecia uma relação paradoxal importante nas práticas medicas (Gadamer,</p><p>1994). Guggenbuhl-Craig (1983), através de uma série de exemplos, demonstra</p><p>o conceito de médico ferido em culturas diversas. Observa que, na mitologia</p><p>grega, o Centauro que ensinou a Esculápio a arte da medicina era portador de</p><p>chagas em todo o corpo; na Índia, Kali, a divindade ligada à varíola, pode ao</p><p>mesmo tempo provocar e curar essa doença. Na cultura afro-brasileira e, em par­</p><p>ticular no candomblé, a figura do médico ferido é representada por uma divinda­</p><p>de, Omolu, que traz com ele os signos da doença e da cura. Segundo Ruth Landes</p><p>(1950), esta polaridade, doença/cura ocupando um mesmo espaço, não é caracte­</p><p>rística única da divindade Omolu, uma vez que se encontram em outras manifes­</p><p>tações da cultura afro-baiana.</p><p>O relacionamento de pessoas doentes com essa divindade, o papel de Omolu</p><p>no candomblé e suas representações iconográficas são elementos de uma pesqui­</p><p>sa etnográfica que estamos realizando em Salvador, desde 1995, cujos dados pre­</p><p>liminares constituem o conteúdo deste t rabalho 2 .</p><p>A necessidade de uma maior sensibilidade por parte do médico frente ao</p><p>sofrimento do paciente e a transformação da prática médica, dirigida para uma</p><p>medicina mais humana, abrem duas principais perspectivas de análise que serão</p><p>desenvolvidas neste estudo : 1) Uma primeira, de tipo etnográfico, tenta analisar</p><p>como esse tema é abordado na cultura afro-brasileira, dando-se um enfoque a</p><p>figura da divindade Omolu no candomblé da Bahia e à relação desta divindade</p><p>com os próprios filhos e com as pessoas doentes; 2) Uma segunda, de natureza</p><p>epistemológica, focaliza a discussão sobre os fundamentos teóricos da prática</p><p>médica, através de uma análise crítica da medicina ocidental e da lógica que</p><p>sustenta suas práticas. Esta perspectiva permite chamar a atenção sobre a realida­</p><p>de da comunicação médico-paciente e a necessidade dos clínicos desenvolverem</p><p>a sensibilidade para ouvir e estabelecer relações mais humanas com o paciente.</p><p>OMOLU:</p><p>O SENHOR DOS LABIRINTOS</p><p>Nesta parte, apresentaremos aspectos da cultura afro-baiana, em particular,</p><p>a elaboração do conceito de médico ferido representado no candomblé pela di­</p><p>vindade Omolu. Uma descrição das características dessa divindade, permitirá</p><p>explorar sucessivamente a relação que se estabelece entre doente, experiência da</p><p>doença e divindade. Esses dados preliminares da pesquisa etnográfica que estamos</p><p>realizando na cidade de Salvador (BA), foram abordados em três áreas de inte­</p><p>resse no campo da antropologia médica.</p><p>O primeiro importante contexto de estudo é constituído das práticas de cura</p><p>que se realizam nos terreiros de candomblé e que preservaram os elementos cul­</p><p>turais afro-brasileiros, resguardando-se do sincretismo com outros elementos reli­</p><p>giosos e rituais. Profundamente ligado às tradições do passado, o terreiro Axé</p><p>Opo Afonjá constitui um primeiro grande espaço de encontro e reflexão.</p><p>A segunda importante área de estudo é constituída dos terreiros de candom­</p><p>blé de caboclo. Após uma série de entrevistas preliminares com diferentes Mães,</p><p>Pais de Santo e Yaôs de diversas comunidades religiosas, foram estudados, prin­</p><p>cipalmente, dois terreiros, o primeiro no bairro da Federação e o segundo, na</p><p>Ribeira.</p><p>O terceiro contexto de análise constitui-se dos espaços sincréticos em que</p><p>elementos do culto afro-brasileiro combinam-se com elementos católicos. Pude­</p><p>mos identificar este aspecto de sincretismo na igreja de São Lázaro 3 , lugar de</p><p>grande afluência de doentes, em busca da proteção dos santos a ela dedicados,</p><p>São Lázaro e São Roque, identificados com as divindades do candomblé Omolu</p><p>e Obaluaiê.</p><p>HETERÔNIMOS</p><p>A abordagem lexical permite identificar uma polissemia manifesta em dife­</p><p>rentes heterônimos utilizados para expressar o nome de Omolu. Omolu significa</p><p>"Filho do Senhor" e Obaluaiê "Rei, Senhor da Terra" (Verger, 1992). Esses dois</p><p>nomes designam a mesma divindade mas, em alguns contos míticos, no discurso</p><p>popular e na literatura antropológica (Carneiro, 1948), são interpretados também</p><p>como duas formas da mesma divindade, uma mais jovem (Obaluaiê) e a outra</p><p>mais velha (Omolu). Donald Pierson (1967), por exemplo, apresenta um conto</p><p>recolhido nos anos 30 no qual essas duas figuras são representadas como pai e</p><p>filho.</p><p>Omolu é chamado "rei do mundo" não por ser somente uma divindade da</p><p>terra, mas pela relação mítica com os outros Orixás. Ele foi nomeado rei por</p><p>Oxalá em um dos mais lindos contos que compõem o sistema mítico desse Orixá,</p><p>conforme a narrativa de Detinha, Obágesi, do Ilê Axé Opo Afonjá:</p><p>E certa vez, Oxalá já estava caminhando para velhice, mas não</p><p>estava tão velho, então Exu partiu pra Oxalá e pediu: "- Olha, meu</p><p>pai, o senhor está tão velho, dê cá logo a minha herança, a minha</p><p>parte. Porque é que o senhor não divide logo? " "-Mas meu filho4, não</p><p>está no tempo de eu dividir a herança, mas como você quer, aí eu vou</p><p>dar a sua parte ". Aí deu a parte da herança prá ele, e não deu para os</p><p>outros. Então quando ele foi chegando mais pra velhice, ele disse "-</p><p>Agora eu vou dividir a herança para meus filhos ". Aí Exu voltou... já</p><p>tinha acabado com tudo: "- Eu também quero " "- Mas Exu, eu não dei</p><p>a sua parte?" "— Ah, eu não quero saber, eu quero mais. " Aí Oxalá</p><p>tornou a dividir, deu umas terras a ele, que essas terras eram as encru­</p><p>zilhadas (essas encruzilhadas é dele), e deu mais outras coisas que ele</p><p>exigiu e foi dividindo com os outros filhos. Na hora que ele chamou</p><p>Omolu, (aí é que entra a história de Omolu), chamou Omolu, e disse:</p><p>"— Meu filho, tá aqui a sua parte ". Ele disse: "- Eu não quero meu pai,</p><p>eu não quero herança. Eu quero o senhor. Aí Oxalá levantou da cadei­</p><p>ra, do trono, chamou todos e disse: "- Meu filho, já que você não quer</p><p>nenhuma herança, então eu vou lhe sentar no meu trono. A partir de</p><p>hoje, Omolu, você se chamará Obaluaiê, o rei do mundo ". Mas como</p><p>Omolu trouxe a missão de viver curando as pessoas doentes de pele...</p><p>de doenças de pele, então aquele trono só vivia vazio. Xangô chegando,</p><p>encontrou o trono vazio, aí disse: "- Cadê Omolu? " "-Ah, Omolu está</p><p>aí pelo mundo curando " "- E o trono está vazio? " Aí sentou na cadeira,</p><p>aí chamou (ele era muito querido), chamou por todo mundo e se coroou</p><p>como rei. Essa é uma das histórias de Omolu, porque Omolu se chama</p><p>Obaluaiê, é o mesmo, certo? Ele ganhou esse título por causa disso.</p><p>Assim, podemos encontrar muitos outros nomes menos comuns, presentes</p><p>na literatura antropológica: Saponan, Wari-warú, Afoman, Omonolú (Rodriguez,</p><p>1935), Odogun (Ramos, 1934) 5 . O termo Sakpata, que em nagô antigo significa</p><p>"que corta, que mata" e que corresponde a Xapaná em Yorubá, é um nome pouco</p><p>pronunciado pelo medo que essa palavra produz, conforme informação de Pierre</p><p>Fatumbi Verger (1955). Por isso, prefere-se utilizar os nomes Omolu ou Obaluaiê.</p><p>Outros termos como: "o velho", "a doença do velho, o "velho chegou", são</p><p>utilizados na linguagem popular para nomear Omolu e marcam duas importantes</p><p>características dessa divindade: uma ligada à sabedoria e a outra ao sofrimento, à</p><p>d o r 6 . Tais características se manifestam na dança com o corpo dobrado, nas con¬</p><p>torções e nos espasmos dos músculos do corpo, na cabeça inclinada em recolhi­</p><p>mento, e no ritmo particular chamado Opanijé, significando em Yorubá: "Ele</p><p>mata qualquer um e come" (Verger, 1993:229)</p><p>Outros contos míticos, a ele dedicados, favorecem a compreensão da relação</p><p>dessa divindade com as doenças epidêmicas e da pele, e com o jogo entre o</p><p>visível, o estigma e o contágio. Podemos citar o conto mítico (Orikí) que se refere</p><p>ao nascimento de Omolu e que permite identificar algumas de suas característi­</p><p>cas, como a de ser filho de Nanã, divindade das águas, das lagoas, da lama. Esta</p><p>narrativa é apresentada, aqui, na versão de Detinha, Obágesi do Ilê Axé Opo</p><p>Afonjá:</p><p>Omolu é filho do Orixá Nanã com Oxalá. Mas esse filho nasceu</p><p>muito cheio de problemas, doenças de pele, cheio de feridas. Então Nanã</p><p>desprezou ele. Iemanjá encontrando ele jogado fora, né, acolheu ele,</p><p>criou ele, curou as feridas dele e quando ele cresceu, ele saiu pelo mundo</p><p>curando as doenças de pele, principalmente catapora, sarampo, varíola,</p><p>esses tipo de doença, todo tipo de doença de pele... e certa vez a mãe dele</p><p>mandou chamar ele para pedir perdão porque estava arrependida do</p><p>que ela havia feito. Então ele perdoou. Mas a mãe dele, que ele considera</p><p>muito mais do que a própria Nanã, é Iemanjá. Aí tem uma prova que a</p><p>verdadeira mãe muitas vezes não é aquela que pare, e sim, aquela que</p><p>cria, né? Que cria, que educa, mas ele perdoou a mãe dele.</p><p>A presença de feridas divinas, desde o nascimento de Omolu, confere-lhe</p><p>uma dupla polaridade de figura doente, com poderes de cura. O drama de ser</p><p>rejeitado, em um primeiro momento, pela mãe e de ser recolhido por Iemanjá</p><p>marcam sucessivamente a sua vida errante pelo mundo, curando as doenças con­</p><p>tagiosas.</p><p>Divindade da varíola, deus das pestes, mas também das doenças da pele, a</p><p>sua imagem iconográfica manifesta uma simbologia carregada de significados.</p><p>O cetro real, o Xaxará, que e\e sustenta com a mão e os búzios que enfeitam sua</p><p>veste de palha são um "manifesto-signo" de poder divino e de cura. O Xaxará é</p><p>descrito por Verger como "Uma espécie de vassoura feita de nervuras de folhas</p><p>de palma, decorada com búzios, contas e pequenas cabaças que se supõe conter</p><p>remédios" (1993:229). A veste de palha da costa que cobre o rosto e o corpo cria</p><p>uma barreira ao olhar, impedindo que seu corpo contorcido e ferido seja visto,</p><p>abrindo, assim, os caminhos do imaginário coletivo. Interdições físicas e visuais</p><p>obrigam a manter uma distância com a divindade como o preceito passado pelo</p><p>Obá Aré do Opo Afonjá :"Esse Santo não se deve abraçar" (Cruz De Andrade et</p><p>al, 1959). Durante as festas dos terreiros, quando a divindade se manifesta em</p><p>uma pessoa, essa é coberta</p><p>com um pano branco chamado alá, para que seu rosto</p><p>não seja visto.</p><p>Nos terreiros, a comida de Omolu, com bastante dendê e servida em folhas</p><p>de mamona, é constituída de feijão preto, milho branco, vatapá, acompanhados</p><p>de carne de galo e bode 7 . Essa comida é preparada durante uma cerimônia a ele</p><p>dedicada, chamada Olubayê8. Esse ritual consiste em uma cerimônia de oferenda</p><p>de comidas frias. A comida é preparada pela manhã, cedo, muito antes da festa</p><p>que se realiza, geralmente na segunda feira, dia de Omolu. Além da oferenda</p><p>dessas comidas, é ofertada muita pipoca, lançada sobre Omolu e todas as pessoas</p><p>presentes à cerimônia.</p><p>A origem desse ritual e da relação existente entre Omolu e Oxum pode ser</p><p>encontrada no mito, abaixo, contado por Detinha:</p><p>Certa vez Omolu se aborreceu, se aborreceu e aí sumiu. Ninguém</p><p>achava Omolu. Todos procuravam ele e não achavam. Foram pedir</p><p>para Nanã procurar ele, ninguém achou Omolu. E Oxum era muito</p><p>feiticeira. O feitiço dela era na comida. Ela aí fez uma comida muito</p><p>gostosa, muito cheirosa, botou num balaio e cobriu e saiu andando</p><p>pelo mundo afora... aquele cheiro! Aí Omolu não agüentou, que já es­</p><p>tava com muita fome, há dias que ele estava com fome. Aí ele disse: "-</p><p>Oxum! Oxum!". Aí Oxum ficou procurando. "- Oxum!" Ela olhou e ele</p><p>estava dentro de um buraco. "Você me dá um pouco de sua comida,</p><p>Oxum?!" Ela disse: "- Omolu! Não, sai, eu lhe dou comida. Eu lhe</p><p>dou, mas você sai aí desse buraco. " Aí ele disse: "— Não saio não " "-</p><p>Sai Omolu. Sai que eu lhe dou a comida ". Ele saiu, aí ela entregou a</p><p>comida. Quando entregou, aí ela agarrou ele, e gritou pelo povo: "-</p><p>Ah! Omolu, achei Omolu ". Aí tirou essa cantiga:</p><p>Yèyé so lu ba je iso</p><p>lu ba je</p><p>Yèyé so lu ba je iso</p><p>lu ba je 9</p><p>Aí que Oxum ficou muito amiga de Omolu, muito amiga de Omolu.</p><p>Há uma relação privilegiada desta divindade com a terra que constitui um</p><p>elemento interpretativo central no candomblé, sendo a terra símbolo de fertilida­</p><p>de, de energia, de força. Nesse conto mítico sobre a origem do Olubayê reforça-</p><p>se a relação de Omolu com a terra, encontrando-se ele dentro de um buraco, em</p><p>contato direto com as partes mais profundas da terra.</p><p>A terra é necessária para o desabrochar da natureza, e o povo do candomblé</p><p>sempre está saudando-a, tocando primeiro o solo com a mão e depois a cabeça.</p><p>Esse ato de se voltar para a terra-mãe foi interpretado por Vanda Machado (1996)</p><p>nesse enunciado: "Quando você toca o solo e depois a cabeça, você está tirando</p><p>a força da terra para sua cabeça". Essa relação com a terra está presente também</p><p>em Oxumaré, irmão de Omolu, representado simbolicamente por uma serpente</p><p>que, rastejando ao sol, mantém um vínculo indissolúvel com a terra. É preciso</p><p>considerar que Omolu está ligado também à terra árida, seca, daí serem os cactos,</p><p>árvores ligadas a ele. A dupla lógica interpretativa da terra que de um lado é</p><p>fértil, dando a vida, é, de outro, o espaço onde repousam os corpos e os ossos dos</p><p>mortos. Nanã e Omolu estão profundamente ligados também a esse processo. Na</p><p>verdade, o temor que Omolu produz nas pessoas não é somente relacionado à</p><p>possibilidade de produzir a doença mas advém da forte ligação que ele tem com</p><p>os Eguns, os ancestrais, e com a própria morte, o que explica que muitas pessoas</p><p>de candomblé, quando vão a um funeral, levam consigo contas de Omolu ou</p><p>contas de Iansã10. Esta ligação com a morte é a lógica conseqüência da relação</p><p>que essa divindade mantém com a doença. Ele é filho de Nanã que, por sua vez,</p><p>está relacionada com a morte. Sendo ligada à lama primordial, à terra da própria</p><p>criação dos homens, Nanã é, ao mesmo tempo, responsável pela devolução dos</p><p>corpos dos seres humanos à própria terra. Ela se situa no espaço chave entre a</p><p>vida, o nascimento dos indivíduos, e a passagem para a morte e Omolu, como seu</p><p>filho, tem a responsabilidade sobre os ossos dos mortos.</p><p>O MÉDICO FERIDO</p><p>Narra Artur Ramos (1934: 37-38) este caso: " me foi relatado no</p><p>Gantois, de Américo, antigo filho de santo que quis retirar-se de um</p><p>candomblé no momento em que cantavam a Omolú. "não saia que você</p><p>se arrepende!" Exprobraram-lhe. Não fez caso e saiu "que me impor­</p><p>ta! " exclamando. No caminho, alta noite, encontrou um velho que lhe</p><p>esfregou as mãos no rosto. Ali mesmo caiu e ficou três dias, ao fim dos</p><p>quais o foram encontrar coberto de bexigas "</p><p>Uma abordagem semântica da figura de Omolu permite identificar alguns</p><p>elementos simbólicos importantes: Omolu é, principalmente, o Orixá das epide­</p><p>mias, "das doenças que pegam" como dizem no candomblé (Costa Lima, 1995).</p><p>Do ponto de vista histórico, esta relação com as doenças epidêmicas graves como</p><p>a varíola produziu um vasto fenômeno religioso de culto, conforme menciona</p><p>Artur Ramos (1934:37): "Nas antigas epidemias de varíola, na Bahia, o seu culto</p><p>tomou uma extensão assombrosa".</p><p>O conceito de doença transmissível, para os membros do candomblé, está</p><p>associado à figura de Omolu. As doenças varíola, catapora, lepra, peste, sarampo,</p><p>rubéola ligam-se a esta divindade e se evidenciam, muitas vezes com manifesta­</p><p>ções cutâneas, signos que reforçam as relações com essa figura, como nesse caso</p><p>relatado de uma Mãe de Santo".</p><p>O filho de uma amiga estava doente de catapora e a minha neta</p><p>ficou doente também. Ela estava toda pocadinha, toda enfofadinha. Mas</p><p>saiu tanta! É o Velho que traz essas doenças.</p><p>Uma primeira interpretação causal considera a manifestação da doença como</p><p>uma punição da divindade contra aqueles que: "o ofenderam ou conduziram-se</p><p>mal" (Verger, 1992:61). Esta interpretação é muito freqüente entre as comunida­</p><p>des de diferentes terreiros. No entanto, uma segunda interpretação dada por Mãe</p><p>Stella, Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, considera que a doença não é produto de</p><p>uma punição divina, mas conseqüência de um comportamento individual não</p><p>condizente com os fundamentos relacionados à divindade. Para Mãe Stella, os</p><p>Orixás não punem as pessoas, mas elas podem ficar mais frágeis se não cuidam</p><p>do próprio Orixá, e se o ofendem. Se isso ocorre, a pessoa pode ficar como uma</p><p>criança sem a proteção do pai.</p><p>Na manifestação da doença, uma relação analógica se estabelece entre feri­</p><p>das divinas e lesões cutâneas, entre a "contagiosidade" da doença do divino e a</p><p>transmissibilidade no ser humano. Pode-se identificar esta relação entre as feri­</p><p>das de Omolu e as flores de pipoca, uma das suas comidas preferidas e utilizada</p><p>nos banhos de purificação e em diferentes rituais.</p><p>A visibilidade cutânea mostra uma clara presença de um estigma de contá­</p><p>gio. Uma das doenças que não entra nesse jogo de lesões cutâneas visíveis e</p><p>contágio é a epilepsia, considerada em alguns terreiros como a expressão emble­</p><p>mática de possessão. Tal interpretação é negada por outros, em um jogo de</p><p>polissemia e multivocalidade, sempre presente no candomblé. Omolu, na dança,</p><p>às vezes, se move espasmodicamente, com movimentos clônicos que lembram a</p><p>epilepsia. O tronco e a cabeça curvados mantêm uma relação analógica entre as</p><p>manifestações da doença e a dança.</p><p>Várias interpretações consideram a epilepsia como uma doença típica de</p><p>Omolu. Uma Mãe de Santo assim me contou:</p><p>o povo diz que essas doenças de bater pertencem a Omolu, essa é epi­</p><p>lepsia.</p><p>Segundo a tradição popular, o contágio entre uma pessoa epiléptica e outra</p><p>se produz através do contato com a saliva como pode-se comprovar pelo caso</p><p>que colhemos da narração uma pessoa que assim contou:</p><p>Ele começou a se bater, babar, bater a cabeça, quebrou a boca,</p><p>ninguém queria encostar nele com medo da baba, pensando que era</p><p>epilepsia. Se entortou todo.</p><p>Esta saliva na boca assume o valor de signo que permite, em diferentes cul­</p><p>turas, definir o contagio de uma doença. Uma dupla interpretação causal liga a</p><p>epilepsia à figura de Omolu e ao contágio com a saliva. As contrações, signo de</p><p>uma doença ligada a Omolu, convidam a pessoa</p><p>atingida a estabelecer uma rela­</p><p>ção com a divindade através de uma série de obrigações, que permitem curar ou</p><p>reduzir a sintomatologia.</p><p>O tema do terapeuta sensível ao sofrimento e à dor do paciente se manifesta</p><p>de maneira profunda no candomblé não somente pelas próprias características de</p><p>Omolu, mas pela presença de terapeutas que vivenciaram, eles próprios, um pro­</p><p>cesso de doença, de sofrimento e de cura. Aliás, no caminho terapêutico do pa¬</p><p>ciente esses terapeutas tentam restabelecer o equilíbrio da pessoa doente, recupe­</p><p>rando a energia vital, isto é, o axé. Três principais formas de cura podem ser</p><p>identificadas: 1) trata-se de rituais de purificação como o banho de flores de pi­</p><p>poca ou com a água do s a n t o 1 1 ; alguns destes rituais, os ebó, permitem a passa­</p><p>gem da doença do corpo da pessoa ao alimento ou, ao animal em um processo de</p><p>contágio por contigüidade, descrito também em outras culturas (Frazer, 1973;</p><p>Perrin, 1985; Caprara, 1994); 2) refere-se aos cumprimentos de uma série de</p><p>obrigações dedicadas a Omolu como, por exemplo, realizações de cerimônias no</p><p>mês de agosto. Uma mulher, filha de Omolu como os diversos membros da sua</p><p>família, nos contou que toda a família tem a devoção de jogar pipoca no telhado,</p><p>nas pessoas e distribuir pipoca aos meninos de rua; caso a família não faça isso,</p><p>os membros dela ficam doentes, com aparecimento de feridas, furúnculos, abces¬</p><p>sos nas pernas, e nos braços; 3) trata-se da adivinhação do jogo de búzios, que</p><p>permite a Mãe de santo adivinhar quem é o Orixá que pede que a pessoa " seja</p><p>feita" (Braga, 1988). A partir desse momento, a cura acompanha um longo pro­</p><p>cesso de iniciação, já descrito na literatura antropológica (Ramos, 1934; Carnei­</p><p>ro, 1948; Bastide, 1978). Em diferentes casos que pude documentar, a cura se</p><p>produziu depois da iniciação.</p><p>O JOGO DO REVERSO</p><p>Um ponto importante dessa pesquisa refere-se, principalmente, à relação entre</p><p>paciente e divindade, com a freqüente mediação da Mãe e do Pai de Santo na</p><p>prática terapêutica. Uma primeira relação se estabelece entre Omolu e seus fi­</p><p>lhos 1 2 . Os filhos desse Orixá utilizam colares de cor preta e vermelha, em parti­</p><p>cular um de cor preta chamado Lagdibá. No Axé Opo Afonjá, em toda primeira</p><p>segunda-feira do mês, há uma obrigação dentro da casa de Omolu13. Geralmente,</p><p>no domingo, os filhos dele dormem no terreiro para que na segunda feira, reali­</p><p>zem o ritual chamado Ose, que se caracteriza pela limpeza das ferramentas do</p><p>Orixá e dos assentamentos. Entrando na casa de Omolu, os filhos ficam em silên­</p><p>cio porque a palavra, para ser comunicada com essa divindade, deverá ser muito</p><p>cuidada.</p><p>Ele é um Orixá muito temido e, em uma espécie de jogo de reverso, seus</p><p>filhos e outras pessoas que lhe querem pedir um favor terão de pronunciar o</p><p>pedido ao contrário: "Omolu, eu peço que você não me ajude" falam assim por</p><p>temor a ele. Este jogo de contrários não se manifesta somente na relação entre</p><p>indivíduo e divindade mas também nas relações entre os membros do terreiro.</p><p>Um exemplo que pode espelhar esse jogo é o fato de uma pessoa mais velha, filha</p><p>de Iansã, encontrar uma pessoa mais jovem e afirmar: "lansã te abençoa", refe­</p><p>rindo-se ao próprio Orixá. Esse tipo de cumprimento é comum para todos os</p><p>Orixás, exceto para Omolu. Nesse caso, não se pronuncia a frase para não desen¬</p><p>cadear um processo reverso, que poderia produzir o irreparável. Ao mesmo tem­</p><p>po, esse respeito, esse temor que se mantém com a divindade, influencia também</p><p>a relação com os seus filhos que são respeitados para não ofender o pai. É fre­</p><p>qüente ouvir a seguinte frase: "Não mexa com um filho de Omolu porque ele é</p><p>filho de Omolu".</p><p>O jogo do reverso atravessa a cultura afro-brasileira e se manifesta em</p><p>múltiplas outras formas interpretativas. Remonta suas raízes à cultura africana,</p><p>como j á descrevemos em precedentes publicações (Caprara, 1994). No can­</p><p>domblé, o jogo do reverso pode ser identificado, além da transformação que se</p><p>produz nos seres humanos através dos estados de possessão, em outras formas</p><p>de inversão. Pode-se também enfatizar o forte vínculo existente entre imaginá­</p><p>rio e realidade, entre as múltiplas formas evocadas através do discurso, dos</p><p>sonhos, das práticas, e da vida quotidiana. Omolu representa esta subversão da</p><p>ordem.</p><p>A MEDICINA NOS LABIRINTOS DO CONHECIMENTO</p><p>Uma tradição importante vem se desenvolvendo nos últimos anos, na antro­</p><p>pologia médica, com autores como Byron Good, Arthur Kleinman, Gilíes Bibeau,</p><p>Allan Young, que interpretam a doença como um produto culturalmente determi­</p><p>nado. A doença é vista não como entidade mas como modelo organizado em uma</p><p>rede semântica (Good, 1977; Bibeau, 1981), em um modelo explicativo (Kleinman,</p><p>1980), numa estreita relação com os fatores econômicos e sociais (Young, 1976).</p><p>A cultura, nesse sentido, organiza a experiência da doença e do comportamento</p><p>de maneira diferente nas diversas sociedades. Neste processo produzem-se metá­</p><p>foras e símbolos ligados à doença e, nessa perspectiva, mesmo as práticas médi­</p><p>cas passam a ser consideradas como atividades culturalmente determinadas.</p><p>Uma análise que procura sondar como a medicina é determinada cultural­</p><p>mente e como constrói os próprios objetos de conhecimento vem sendo desen­</p><p>volvida por Byron Good (1994). Adotando uma perspectiva que desenvolve uma</p><p>teoria estética da doença, este autor tenta compreender como o conhecimento</p><p>científico se conforma em práticas culturais específicas. Através de uma dupla</p><p>perspectiva, centrada no significado e na teoria crítica, Good utiliza a teoria das</p><p>formas simbólicas de Cassirer para analisar como se forma o objeto de conheci­</p><p>mento na área médica. Observa que a medicina ocidental vem construindo, até o</p><p>momento, seus próprios objetos através de uma série de processos definidos.</p><p>Nesse sentido, a maioria das Faculdades de Medicina estuda a doença, principal­</p><p>mente, em sua dimensão física, patológica, transportando essa visão para a práti­</p><p>ca hospitalar. Os estudantes entram no universo médico adotando práticas defini­</p><p>das de conhecimento, formas especializadas de escritura, observação e lingua­</p><p>gem que modelam a realidade em uma maneira específica.</p><p>Se é certo que a doença tem uma dimensão física, que é estudada nas facul­</p><p>dades e vivida quotidianamente na prática clínica, há também outra dimensão</p><p>"experiencial", ligada ao paciente e à sua maneira de perceber e viver o sofri­</p><p>mento e à dor, já vista neste trabalho sobre as práticas usadas no candomblé. Este</p><p>outro aspecto é, freqüentemente, ignorado pelos profissionais da medicina na</p><p>prática quotidiana, sendo completamente esquecido já na fase da formação médi­</p><p>ca. A discussão da função do profissional em relação ao paciente acontece so­</p><p>mente em alguns casos específicos no campo da medicina e da enfermagem. Des­</p><p>taca-se, hoje, o caso da AIDS, em que a difusão da pandemia tem produzido a</p><p>proliferação de "formações discursivas" sobre esse tema que tocam aspectos po­</p><p>líticos, éticos, científicos, sociais e de comunicação. O aspecto totalmente novo</p><p>dessa doença é que pela primeira vez, muitos doentes contam a própria história,</p><p>quebrando o silêncio, demistificando a doença (Bibeau, 1994). Em alguns casos</p><p>úteis para nossa reflexão, os doentes se transformaram em "mestres para seus</p><p>psicoterapeutas", levando-lhes a se confrontarem com eles mesmos, com os seus</p><p>próprios medos, pondo em discussão a própria vivência (Michaud, 1994).</p><p>Nesse sentido deve ser interpretado o pensamento de Gadamer (1994), cita­</p><p>do anteriormente, chamando a atenção para a necessidade de que o médico seja</p><p>sensível à experiência do paciente, o objeto de observação se transforme em novo</p><p>sujeito e o caminho da formação dos estudantes de medicina possa levar em con­</p><p>ta elementos de um percurso similar ao psicanalítico.</p><p>No candomblé são documentáveis vários casos de terapeutas que vivenciaram</p><p>neles mesmos</p><p>um processo de doença. Por isso o conceito de médico ferido está</p><p>presente além da figura de Omolu. Os dados etnográficos apresentados na pri­</p><p>meira parte, que focalizam a atenção sobre a relação entre paciente e divindade</p><p>com a freqüente mediação da Mãe e do Pai de Santo, nos convidam a considerar</p><p>a relação que se estabelece entre terapeuta e paciente.</p><p>Na consulta clínica, a relação médico-paciente é caracterizada por diferentes</p><p>etapas: pela apresentação da sintomatologia por parte do paciente, pelo processo</p><p>diagnóstico, de tradução dos sintomas em doença definida patologicamente, e</p><p>pela prescrição de um tratamento determinado pelo médico e aceitável pelo pa­</p><p>ciente. Nesse processo, seria necessário construir uma "negociação" em que en­</p><p>tra o consenso entre médico e paciente (Helman, 1984). Muitos problemas apare­</p><p>cem durante esse encontro: a má compreensão por parte do médico das palavras</p><p>utilizadas pelo paciente para expressar a dor e o sofrimento, a incompatibilidade</p><p>dos modelos explicativos e as dificuldades na adesão ao tratamento. Para poder</p><p>superar essas dificuldades, na lógica do modelo explicativo, Kleinman (1980)</p><p>sugere que o médico tente compreender como o paciente e seus familiares vivem</p><p>e interpretam a origem e o significado da doença, considerando não somente a</p><p>dimensão física, mas também a emocional, a social e a comportamental. Em uma</p><p>fase sucessiva de seu pensamento, esse autor desenvolveu uma série de conceitos</p><p>e categorias analíticas que consideram a doença como uma expressão polissêmica,</p><p>multivocal, como rede de significados que relacionam a experiência da doença</p><p>com a visão do mundo (Kleinman, 1988; 1991). A própria narrativa da experiên­</p><p>cia do paciente transforma-se em uma importante resposta à sua doença, reafir­</p><p>mando valores culturais que constituem, às vezes, um manifesto de condenação</p><p>de uma experiência de opressão e de violência.</p><p>Nesse sentido, uma análise antropológica da saúde, da doença e do saber</p><p>médico exige um conhecimento da linguagem e da experiência do sujeito (Good,</p><p>1994). Essa perspectiva foi retomada nos últimos anos, no Brasil, por alguns</p><p>autores que abordam a temática de um ponto de vista teórico (Alves e Rabelo,</p><p>1995). Nessa orientação, a experiência da doença contada através das histórias</p><p>de vida, os estudos de caso, as entrevistas e os diálogos dos pacientes com os</p><p>médicos, constituem uma forma de expressão narrativa que ajuda a compreender</p><p>os múltiplos significados da doença.</p><p>Mas é necessário perguntar se os instrumentos de análise da narrativa, pro­</p><p>venientes da crítica literária, são suficientes para compreender o polimorfismo, a</p><p>multivocalidade de sentido ligado a experiência da doença. Ellen Corin e Gilíes</p><p>Bibeau propõem, na obra Beyond Textuality, um enfoque que combina elementos</p><p>da antropologia crítica e interpretativa. Por um lado, a narrativa é vista como</p><p>expressão das relações de poder dentro da comunidade, por outro lado, a expe­</p><p>riência da doença manifesta um sentido, no momento em que a experiência indi­</p><p>vidual está ligada aos valores culturais e aos elementos históricos e contextuais.</p><p>Entre as implicações que estes estudos produziram nos últimos anos faz-se</p><p>necessário destacar a experiência da formação dos estudantes da Escola de Medi­</p><p>cina de Harvard (Harvard Medical School) na qual é focalizada a atenção sobre a</p><p>relação entre médico e paciente (Branch et al. 1991). O curso tem base em quatro</p><p>elementos básicos, a saber: 1) O aprendizado começa a partir de uma autobiogra­</p><p>fia pessoal que os alunos realizam em um processo de grupo de reflexão sobre a</p><p>própria experiência; 2) O desenvolvimento de uma compreensão de como a per­</p><p>cepção da doença do paciente influencia o processo de cura; 3) A participação</p><p>dos alunos no processo de coleta de histórias clínicas completas, de anamnese do</p><p>paciente; 4) Um aprendizado dirigido para a compreensão de aspectos de ética</p><p>médica, das ciências sociais e da experiência do médico que trabalha com pacien­</p><p>tes. Essa experiência pode ser um estímulo para que possam ser reproduzidas em</p><p>outras Universidades, em outros contextos, experiências similares de formação.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Este trabalho pretendeu desenvolver uma análise crítica da medicina oci­</p><p>dental e da lógica que sustentam suas práticas, aprofundando elementos ligados</p><p>ao processo saúde-doença e às práticas de cura no candomblé. O conceito de</p><p>médico ferido desenvolvido por diferentes autores como Gadamer e aplicado em</p><p>uma transformação da prática médica ocidental, está, na verdade, presente em</p><p>diferentes culturas entre as quais a afro-brasileira. A divindade Omolu, Orixá das</p><p>doenças que pegam, caracteriza-se pela duplicidade da experiência da doença e</p><p>do poder de cura, favorecendo desenvolver elementos úteis à reflexão para a</p><p>constituição de uma medicina mais humana.</p><p>Atotô.</p><p>AGRADECIMENTOS</p><p>Quero agradecer a Mãe Stella Ialorixá do lie Axé Opô Afonjá, Carybé, Obá</p><p>Kakanfò, Detinha, Genivaldo Rosendo de Lima, Graça de Iansã, Francisco e Eva</p><p>Codes, Susanna Barbara, Anna Nolasco e os outros filhos de Omolu e irmãos do</p><p>Ilê Axé Opô Afonjá pelo carinho, o afeto e a disponibilidade com a qual me aco­</p><p>lheram entre eles. Um agradecimento particular também a Nadja de Andrade</p><p>pela ajuda na transcrição dos contos e das cantigas. Tenho dívidas de gratidão</p><p>também com Mãe Maria Das Neves, Valdiva e as outras Mães, Pais de Santo e</p><p>Yaôs que me ajudaram a penetrar nos labirintos da doença. Gostaria também de</p><p>agradecer a Vivaldo Costa Lima, Naomar de Almeida Filho, Gilíes Bibeau, João</p><p>Guilherme Biehl e Gabriela Godoy pela leitura e comentário de uma primeira</p><p>versão do texto e a Eurides Pitombeira de Freitas, Marialda Silveira e Denise</p><p>Coutinho pela revisão crítica. Durante a pesquisa de campo, este trabalho teve a</p><p>ajuda também de Ana Terra, Armando Castro Filho, Maria de Lourdes, Adriana</p><p>Camargo e de Jacinea Santana na transcrição de parte do material. Muito obriga­</p><p>do a todos.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ALVES, P. C. e RABELO, M. C. (1995). Significação e Metáforas: Aspectos Situacionais</p><p>no Discurso da Enfermidade. In R. Pitta (org.), Saúde e Comunicação. Visibilidades</p><p>e silêncios, São Paulo HUCITEC-ABRASCO, pp. 217-235</p><p>BASTIDE, R. (1978). O candomblé da Bahia: Rito nagô. São Paulo: Nacional.</p><p>BIBEAU, G. (1981). The Circular Semantic Network in Ngbandi Disease Nosology. 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Os dados aqui</p><p>apresentados referem-se a uma parte da pesquisa realizada na cidade de Salvador, Bahia.</p><p>3 Outro espaço terapêutico, perto da Igreja de São Lázaro, é constituído pela gruta de Omolu</p><p>que visitamos várias vezes.</p><p>4 Segundo a tradição Exu também é filho de Oxalá com Nanã, e irmão mais velho de Omolu.</p><p>5 Uma larga lista de termos e qualidades em línguas ketu, jêje e angola é também apresentada</p><p>por Prandi(1994).</p><p>6 A sua personalidade e a relação como as outras divindades p e r m i t e m várias leituras</p><p>interpretativas como aquela do analista junguiano Pedro Ratis e Silva (1987) que em um interessan­</p><p>te conto autobiográfico analisa a própria vida em relação com esse Orixá, ou como aquela de Paulo</p><p>Botas (1996), que representa Obaluayê emquanto "negação da negação".</p><p>7 Nos terreiros da Bahia utilizam-se, também, pato, porco, pombo, feijão fradinho, acarajé,</p><p>farofa de dendê.</p><p>8 Olubayê significa: Olú: aquele que, gba: aceita, je: comer (Cacciatore O. G. 1977).</p><p>9 Uma segunda versão dessa cantiga é a seguinte:</p><p>Olu gba onje</p><p>onje mbo</p><p>e e e onje mbo</p><p>Olu gba onje</p><p>O significado da cantiga é o seguinte: faça bom proveito da comida, venha comer (Mãe Stella,</p><p>Axé Opo Afonjá).</p><p>10 lansã, chamada também com o nome de Oyá, na forma de Yansã de Igbalé é conhecida</p><p>como rainha dos Eguns, podendo penetrar e andar em meio deles (Verger P. R 1993).</p><p>1 1 Por exemplo, pode-se observar a utilização da água da gruta de São Lázaro, em Salvador,</p><p>para banhos rituais.</p><p>1 2 No Ilê Axé Opo Afonjá, Deoscóredes Maximiliano Dos Santos (Didi) mantém um impor­</p><p>tante cargo com Omolu, aquele de Asobá.</p><p>1 3 A casa é consagrada também a sua mãe Nanã e a seu irmão Oxumaré. No Axé Opo Afonjá,</p><p>também, os filhos de Ogum se reúnem na mesma data.</p><p>PSICOTERAPIA,</p><p>DEPRESSÃO E MORTE NO</p><p>CONTEXTO DA AIDS</p><p>Daniela Knauth</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>A AIDS, por ser uma doença transmissível e letal, traz à cena uma série de</p><p>questões que ultrapassam a esfera biomédica e dizem respeito aos aspectos so­</p><p>ciais e culturais dos diferentes grupos atingidos pela epidemia. Os veículos de</p><p>transmissão do vírus - sangue, esperma e leite materno - são os mesmos que,</p><p>tradicionalmente e em diferentes sociedades, aparecem associados à vida. Mais</p><p>que responsáveis pela vida, estes fluidos corporais são definidores de identidade</p><p>individual e de relações sociais - relações de filiação, consangüinidade, paren­</p><p>tesco (Balandier, 1988; Héritier, 1992; Thomas, 1991). A AIDS representa, as­</p><p>sim, uma ameaça não apenas à vida das pessoas infectadas pelo HIV, mas coloca</p><p>em questão, para retomar uma expressão consagrada por Héritier, algumas das</p><p>"imagens arcaicas" da própria sociedade, isto é, os elementos e representações a</p><p>partir dos quais se estabelecem as relações sociais.</p><p>O fato de ser, até o presente momento, uma doença incurável e mortal, faz da</p><p>AIDS um objeto privilegiado de estudo tanto para as chamadas ciências médicas</p><p>(infectologia, farmacologia, epidemiologia.) como para as ciências sociais (socio­</p><p>logia, antropologia, ciência política) e comportamentais (psicologia, psiquiatria).</p><p>As ciências médicas, embora ainda não tenham encontrado a cura da doença, já</p><p>obtiveram um considerável avanço no seu tratamento e no conhecimento dos me­</p><p>canismos de ação do vírus no organismo humano. Pelo viés das ciências sociais,</p><p>diferentes trabalhos têm demonstrado a importância dos fatores sociais, econômi­</p><p>cos e culturais das sociedades e grupos sociais em questão para o entendimento dos</p><p>caminhos seguidos pela epidemia e para a maior eficácia das campanhas de pre­</p><p>venção 1 . Já nas ciências comportamentais, a ênfase parece se dar nas complicações</p><p>psicológicas e/ou psiquiátricas decorrentes da infeção pelo HIV e na urgência de</p><p>tratamento destas a fim de garantir uma melhor qualidade de vida aos pacientes 2 .</p><p>As preocupações destas diferentes áreas do conhecimento parecem estar bem</p><p>delimitadas e definidas. Dificilmente estas preocupações se cruzam e discutem</p><p>entre si, pois são pensadas como pertencendo a esferas diferentes de uma mesma</p><p>realidade, a epidemia da AIDS, que envolve, por sua vez, aspectos biológicos,</p><p>psicológicos, sociais e culturais. Admitem-se já relações entre o biológico e o</p><p>psicológico, embora estas sejam praticamente desprezadas quando o sentido vai</p><p>do psicológico ao biológico, pois são classificadas enquanto "somatização" ou</p><p>doenças "funcionais". E, como afirma Camargo ao analisar a prática médica:</p><p>"doenças evidenciadas como objetivas são mais 'graves' do que as ditas 'funcio­</p><p>nais ' , independentemente de qualquer consideração relativa ao sofrimento dos</p><p>pacientes" (Camargo,</p><p>1991:217). Por outro lado, os aspectos culturais e sociais</p><p>são relegados fundamentalmente à prevenção, sendo considerados irrelevantes</p><p>quando se abordam os aspectos biológicos e psicológicos da AIDS. Estes últimos</p><p>são considerados como decorrentes quase que exclusivamente das características</p><p>do vírus e da doença, mesmo que muitas destas características sejam eminente­</p><p>mente sociais.</p><p>Face a este contexto, o presente artigo se propõe a discutir alguns fatores de</p><p>ordem social e cultural que aparecem intimamente relacionados aos fenômenos</p><p>que, tradicionalmente, são relegados à esfera psicológica 3 . Mais precisamente,</p><p>objetivamos evidenciar como a visão de mundo e a organização social de um</p><p>determinado grupo determinam as estratégias de enfrentamento da doença, inter­</p><p>ferindo, assim, diretamente na manifestação dos aspectos psicológicos a ela asso­</p><p>ciados. Partiremos da relação estabelecida com a medicina e, em especial, com a</p><p>psicologia e/ou psiquiatria a fim de explicitar as diferentes perspectivas em ques­</p><p>tão, ou seja, a perspectiva médica e psicológica baseadas numa racionalidade</p><p>cartesiana e a perspectiva do paciente, que parte de uma lógica diversa. Analisa­</p><p>remos como a categoria psicológica/psiquiátrica de depressão é transformada em</p><p>uma categoria moral, que coloca em jogo o status social do indivíduo. E, por fim,</p><p>enfocaremos a concepção de tempo e de morte que orientam algumas das princi­</p><p>pais estratégias de enfrentamento da doença e que explicitam os valores e a visão</p><p>de mundo do grupo social em questão.</p><p>As conclusões apresentadas neste trabalho devem ser limitadas ao seu uni­</p><p>verso de es tudo, qual seja, o de mulheres per tencentes às camadas mais</p><p>desfavorecidas da população do sul do Brasil. Os dados aqui apresentados resul­</p><p>tam de uma pesquisa que tomou por universo empírico um grupo de quarenta</p><p>mulheres infectadas pelo vírus da AIDS, a partir do qual foram incluídas outras</p><p>pessoas que integravam suas redes de relações imediatas (maridos, pais, filhos,</p><p>sogros, vizinhos, etc.). O contato inicial com as mulheres se deu através do Am­</p><p>bulatório de Ginecologia e Obstetrícia, DST/AIDS do Hospital de Clínicas de</p><p>Porto Alegre (RS), um dos centros de referência nacional no tratamento da AIDS.</p><p>Embora o contato inicial com as mulheres tenha se dado através de um serviço de</p><p>saúde, o foco do trabalho de campo não foi o espaço médico-hospitalar e sim o</p><p>cotidiano das mulheres: suas casas, práticas quotidianas (de trabalho e lazer) e</p><p>redes de relações sociais. A metodologia utilizada foi a etnografía, com o privilé­</p><p>gio à observação participante e entrevistas semi-diretivas.</p><p>As mulheres entrevistadas residem, em sua maioria, em bairros da periferia</p><p>da cidade de Porto Alegre ou na zona denominada de Grande Porto Alegre (que</p><p>compreende, entre outros, os municípios de Guaíba, Canoas, São Leopoldo e</p><p>Alvorada). São bairros populares, sendo que muitos deles dispõem de uma infra-</p><p>estrutura bastante deficiente, tanto no que se refere às condições sanitárias (esgo­</p><p>to, luz, calçamento) quanto em termos de prestação de serviços tais como trans­</p><p>porte, supermercados, farmácias, etc. O acesso ao centro da cidade, onde se situa</p><p>o hospital, consome em média uma hora e, conforme o bairro, necessita a utiliza­</p><p>ção de duas ou mais linhas de ônibus. Quanto às condições de moradia, o univer­</p><p>so em questão apresenta uma diversidade, pois enquanto algumas das mulheres</p><p>possuem residência com um mínimo de conforto e privacidade (quartos indivi­</p><p>duais, cozinha, banheiro interno); outras moram em casas extremamente precárias</p><p>(em favelas) que não dispõem das condições sanitárias básicas, como banheiro e</p><p>esgoto. Essa diversidade em relação à moradia deve-se, entretanto, mais aos re­</p><p>cursos familiares dos quais a informante pode dispor - como uma casa cedida por</p><p>algum familiar, a coresidência ou o auxílio financeiro de um membro da família</p><p>- do à sua própria situação econômica atual. No que diz respeito à composição</p><p>das unidades domésticas, é interessante notar que poucas das mulheres vivem em</p><p>unidades nucleares (casal e filhos). A maioria das unidades domésticas às quais</p><p>as mulheres se vinculam contam com a presença de algum membro da família</p><p>(tanto de origem como de aliança) ou então são a própria unidade doméstica de</p><p>origem da informante (especialmente no caso das mulheres mais jovens e que</p><p>não estabeleceram ainda uma aliança estável). É também bastante comum ter</p><p>outros membros da família morando no mesmo bairro.</p><p>O "FALAR" SOBRE A DOENÇA</p><p>AIDS, em função da própria construção social da doença é, inegavelmente,</p><p>considerada um affaire médico. As mulheres infectadas pelo vírus não hesitam,</p><p>assim, em fazer apelo à medicina. Entretanto, isso não significa que concordem</p><p>com a perspectiva médica da doença e nem que adotem todas as medidas preco­</p><p>nizadas pela medicina. A diferença da perspectiva das mulheres em relação à</p><p>perspectiva da medicina se explicita, sobretudo, face à homogeneização dos doen­</p><p>tes operada por esta última. Isto porque, na perspectiva médica, é a doença que é</p><p>privilegiada enquanto que, para as mulheres, são os doentes que deveriam sê-lo,</p><p>pois se o vírus é o mesmo, as pessoas não são todas iguais. A objetividade impu­</p><p>tada à prática médica, que faz com que esta se interesse apenas pelos fatos tidos</p><p>como concretos (práticas sexuais, sintomas precisos, exames clínicos, etc.), é</p><p>tida como um entrave à relação com os profissionais da saúde. Por outro lado, a</p><p>pouca importância que os profissionais da saúde atribuem ao contexto mais am­</p><p>plo da situação, que na visão das mulheres é fundamental para a apreensão da</p><p>mesma, faz com que as práticas médicas sejam consideradas enquanto julgamen­</p><p>tos morais. Como expressa uma das mulheres entrevistadas ao falar sobre sua</p><p>gestação após o diagnóstico de HIV+: "Nesse estado aqui [grávida], vai ser ain­</p><p>da mais difícil que as pessoas nos ajudem (...). Com que cara eu vou dizer às</p><p>enfermeiras do hospital que (...) eu estou grávida de novo? Elas vão dizer que eu</p><p>não tenho vergonha... Não vão entender....".</p><p>É na relação com o psicólogo e/ou psiquiatra 4 que a objetividade da prática</p><p>médica e o privilégio dado por esta à doença revela-se ainda mais claramente</p><p>para as mulheres infectadas pelo HIV. Pois se a doença possui de fato aspectos</p><p>objetivos, os sentimentos e as emoções não podem receber a mesma classifica­</p><p>ção. Na perspectiva das mulheres, estes provêm antes das relações sociais e das</p><p>condições concretas de existência do que do próprio indivíduo 5 . Espera-se da</p><p>terapia psicológica a resolução dos conflitos manifestados no domínio das rela­</p><p>ções sociais e não no individual. Dessa forma, a psicoterapia, por ancorar seu</p><p>trabalho no indivíduo, não corresponde às expectativas de eficácia. Estas, por sua</p><p>vez, estão pautadas num nível mais pragmático e imediato, implicando, assim,</p><p>uma solução concreta, uma mudança no contexto tido como origem da perturba­</p><p>ção. O depoimento de uma informante, submetida durante anos a acompanha­</p><p>mento psiquiátrico e psicológico e que decidiu suspendê-los, expressa esta con­</p><p>cepção:</p><p>Eu parei porque isso [a psicoterapia] não resolvia nada. Ele [o</p><p>psiquiatra] não dizia nada e o que ele me dizia eram coisas que eu já</p><p>sabia. Sobre esse medo que eu tenho de ladrão, de bandidos, ele dizia</p><p>que isso existe em tudo que é lugar... Até no dia que ele foi assaltado...</p><p>Daí eu disse para ele: "Os ladrões, tu não precisas te preocupar, não</p><p>precisa ter medo, tem por todo lugar!". Por que é que tu vai ficar con­</p><p>tando tua vida se isso não vai resolver nada, se isso não vai mudar</p><p>nada? Eu concordo com a minha tia que diz que se é para tu contar tua</p><p>vida para outras pessoas que não podem fazer nada para resolver teus</p><p>problemas, então é melhor nem dizer nada. (Cristina, 25 anos)</p><p>A única vantagem que as mulheres reconhecem na psicoterapia reside no</p><p>tipo de relação com o profissional da saúde que</p><p>esta oferece, considerada como</p><p>mais personalizada, mais "humana", do que as relações estabelecidas com os</p><p>demais profissionais. Isto em função do próprio método de trabalho empregado,</p><p>a entrevista ou, na categoria êmica, a conversa. Entretanto, esta personalização</p><p>da relação não é vista como recíproca, pois não há uma correspondência por</p><p>parte do terapeuta. Assim, quando se referem à psicoterapia, as mulheres fazem</p><p>questão de salientar que esta relação que se estabelece com o terapeuta não é</p><p>verdadeira, sincera. O psicoterapeuta é classificado, em geral, como sendo seco e</p><p>muito direto e neste contexto o diagnóstico é percebido como uma espécie de</p><p>recriminação.</p><p>Mas, se esta avaliação é também válida para outras situações nas quais os</p><p>membros dos grupos populares são confrontados com este tipo de terapêutica, no</p><p>caso da AIDS ela adquire uma dimensão maior, na medida em que se trata de</p><p>uma doença transmissível e mortal. Estas características da doença, quando sub­</p><p>metidas a uma perspectiva psicológica, permitem identificar um conjunto de</p><p>manifestações de ordem psíquica - por exemplo, "depressão", "transferência" e</p><p>"negação" - que não correspondem necessariamente à percepção que os doentes</p><p>possuem eles próprios de seu estado e da m o r t e 6 . É neste sentido que a confron­</p><p>tação destas diferentes perspectivas é evocada pelas mulheres como o motivo</p><p>pelo qual não atribuem eficácia à terapia psicológica, como demonstra a fala de</p><p>uma informante transcrita abaixo:</p><p>Elas [as psicólogas] não são tuas amigas de verdade. Elas não</p><p>falam da vida delas É somente tu que fala. E ao invés de te incentivar,</p><p>elas te deixam triste. A primeira coisa que elas te perguntam é se tu tens</p><p>algum sintoma e daí elas dizem: "porque tu sabes que a AIDS tem sin­</p><p>tomas... ". Elas dizem que tu vais morrer, que a AIDS não tem cura... Eu</p><p>não vou mais nas consultas com a psicóloga, isso não adianta nada,</p><p>não resolve nada. Eu até tinha uma hora na semana passada, mas não</p><p>fui. Agora eu vou só nas consultas com a doutora X. (Sirlei, 32 anos)</p><p>Ou ainda o caso de outra entrevistada que, ao relatar o fato de ter esperado</p><p>alguns dias antes de procurar recurso médico em função de uma pneumonia,</p><p>salienta a interpretação da psicóloga a este comportamento como sendo uma</p><p>manifestação do medo que ela tinha da morte, em função da associação pneumo­</p><p>nia/AIDS. Segundo esta informante, este tempo de espera foi o período no qual</p><p>pôde identificar a gravidade da doença e a necessidade de recurso médico e con­</p><p>clui: "e também porque eu não queria deixar as crianças na casa de outra pes­</p><p>soa".</p><p>É interessante notar que a avaliação da eficácia da psicoterapia está subme­</p><p>tida às relações sociais e, particularmente, às questões de gênero. Neste sentido,</p><p>se as mulheres não reconhecem sua eficácia quando elas próprias são as pacien­</p><p>tes, quando se trata dos homens, seus companheiros, elas acreditam que o falar</p><p>com um terapeuta poderia lhes fazer bem. Primeiro, porque consideram que os</p><p>homens não possuem a mesma intimidade que elas com seus consangüíneos e</p><p>amigos, pessoas estas privilegiadas para falar sobre a doença, nas quais é possí­</p><p>vel "confiar" e, portanto, "abrir-se". E neste sentido, é interessante notar que os</p><p>homens são os que resistem mais em revelar sua soropositividade aos familiares</p><p>e amigos e quando o fazem é em função da própria visibilidade da doença. Já as</p><p>mulheres consideram que a revelação de seu estado aos familiares, sobretudo aos</p><p>consangüíneos, é uma espécie de "compromisso" decorrente do caráter mesmo</p><p>da relação, que implica confiança e fidelidade. Segundo, porque o comportamen­</p><p>to masculino é tido pelas mulheres como eminentemente perigoso, não somente</p><p>em relação à saúde, mas em relação a própria vida. Na perspectiva feminina, os</p><p>homens são muito fechados, isto é, não expressam o que pensam e sentem sobre</p><p>a doença. Desse modo, as mulheres se questionam se este silêncio masculino</p><p>significa um desprezo pela doença, no sentido de não conferir importância ao</p><p>evento, ou se, ao contrário, significa a não aceitação desta. E, no caso desta últi­</p><p>ma hipótese, as mulheres temem que os homens serão incapazes de suportar as</p><p>implicações impostas pela própria doença. A psicoterapia possibilitaria assim, no</p><p>caso masculino, falar sobre a doença, acalmando um pouco as inquietações e</p><p>temores femininos. Por outro lado, as mulheres têm consciência de que os ho­</p><p>mens não aceitariam jamais este tipo de terapia pois falar da intimidade, espe­</p><p>cialmente para um especialista, não faz parte da natureza masculina. Mas assim</p><p>mesmo elas não se cansam de indagar, através de um intermediário, que em geral</p><p>é a mulher de um dos amigos da rede masculina, se seu marido não se abriu a este</p><p>respeito.</p><p>A psicoterapia é, enfim, percebida pelas mulheres como uma oportunidade</p><p>de abrir o coração, sendo que o terapeuta pode ser substituído com vantagens</p><p>por uma outra pessoa mais próxima ou por outra relação onde se estabeleça uma</p><p>certa forma de reciprocidade (como aquela estabelecida com o pesquisador). No</p><p>caso estudado, a relação com o psicólogo se estabelece muito mais em função da</p><p>estrutura do serviço do que de uma solicitação por parte das próprias pacientes.</p><p>Na medida em que a psicoterapia é tida como não tendo nenhuma eficácia con­</p><p>creta, o profissional é avaliado por suas características pessoais - simpatia, gen­</p><p>tileza, paciência. A relação com o psicólogo é vista como uma relação pessoal e,</p><p>dessa forma, este é utilizado como intermediário na relação com o médico e com</p><p>os demais serviços do hospital. Por exemplo, quando querem obter uma consulta</p><p>extra com o médico, as pacientes recorrem à psicóloga solicitando encaminha­</p><p>mento e convencendo-a de que se trata de uma urgência.</p><p>DEPRESSÃO: UMA CATEGORIA MORAL</p><p>Não é raro que as mulheres infectadas pelo HIV sejam consideradas pelos</p><p>profissionais da saúde e, em especial, pelos psicólogos e psiquiatras como depri­</p><p>midas. Esta depressão é atribuída a diferentes fatores, tais como o comprometi­</p><p>mento do Sistema Nervoso Central pela ação do vírus, a agudização de proble­</p><p>mas neuropsiquiátricos anteriores e implicações e conseqüências do diagnóstico</p><p>de soropositividade para o HIV, mais precisamente, à possibilidade de morte</p><p>(Abreu et al., 1989). A depressão aparece ainda associada aos sentimentos de</p><p>"vergonha" e "culpa" na medida em que identifica o doente a comportamentos</p><p>"desviantes": a promiscuidade sexual, o homossexualismo, o uso de drogas</p><p>injetáveis e a prostituição (Ajchenbaum, 1992). Face a este contexto, a depressão</p><p>é considerada como uma reação "normal" na medida em que manifesta os senti­</p><p>mentos de "perda" decorrentes do diagnóstico e/ou doença, como afirma Abreu</p><p>et al.; "a maioria dos pacientes com Sida são pessoas jovens, em início de suas</p><p>carreiras e vida afetivas, e que subitamente se vêem tolhidas de planos e perspec­</p><p>tivas de desenvolvimento. Devem aprender a lidar não só com estas perdas, mas</p><p>também com a perda de sua imagem corporal anterior (...), de amigos e eventual­</p><p>mente de companheiro/as, de trabalho e rendimento econômico. A este conjunto</p><p>de perdas, soma-se a presença constante da morte, e a antecipação desta evolu­</p><p>ção dentro dos recursos terapêuticos disponíveis no momento" (Abreu et al.,</p><p>1989:118).</p><p>Na perspectiva médica, a depressão 7 é uma categoria diagnóstica que indica</p><p>um estado patológico - mesmo que no contexto este patológico seja esperado - e</p><p>requer tratamento, psicoterápico e/ou medicamentoso, pois se situa no limiar en­</p><p>tre o orgânico e o psicológico. Vários autores centrados em uma perspectiva an­</p><p>tropológica, j á destacaram a dificuldade de classificar a depressão, tendo em vis­</p><p>ta a diversidade de significados que os denominados sintomas depressivos assu­</p><p>mem nas diferentes culturas (Fabrega, 1974; Bibeau, 1981; Kleinman, 1977;</p><p>Kleimnam e Good, 1985; Uchôa, 1997). Seguindo esta abordagem, podemos</p><p>observar</p><p>como a transposição desta categoria diagnóstica para os grupos popula­</p><p>res, em função da tênue fronteira que separa o psicológico do moral, dá-se sob o</p><p>viés da moralidade. E, neste sentido, a AIDS e suas implicações não justificam</p><p>este estado emocional, mas servem para explicitar uma condição social.</p><p>Na perspectiva das mulheres soropositivas, a depressão aparece associada a</p><p>um conjunto de situações que, em última instância, colocam em questão o status</p><p>social do indivíduo. Em primeiro lugar, a depressão é imediatamente relacionada</p><p>ao pensar em excesso sobre uma situação, no caso a doença. Em segundo lugar,</p><p>o pensar está intimamente relacionado ao corpo, produzindo efeitos neste. E, por</p><p>fim, indica a alocação de tempo para esta atividade e para a própria pessoa em</p><p>questão.</p><p>Assim, este ato de pensar sobre a doença é identificado como a principal</p><p>fonte de angústias individuais e é percebido, neste sentido, como um verdadeiro</p><p>"acelerador" da morte, como expressa uma das entrevistas: "As pessoas que pen­</p><p>sam nisso [doença] muito são aquelas que vão morrer mais ligeiro". Esta relação</p><p>entre pensar e morte adquire seu pleno sentido a partir de uma concepção de</p><p>corpo que supõe a imbricação entre o físico e o moral. Podemos evocar aqui as</p><p>considerações tecidas por Duarte (1986) a respeito do nervoso nas classes traba¬</p><p>lhadoras urbanas. Segundo o autor, há um conjunto de avaliações ligadas às per­</p><p>turbações nervosas que são estabelecidas a partir de duas categorias: idéia e ca­</p><p>beça. Assim, uma pessoa reconhecida como mentalmente incapaz é designada</p><p>pela expressão "fraco das idéias", enquanto o excesso de idéias é associado à ativi­</p><p>dade intelectual (o estudo) e percebido como origem de diversos tipos de loucura</p><p>presentes nos membros das classes dominantes da sociedade. Mas esse excesso de</p><p>idéias é também identificado como tendo efeitos perturbadores sobre os indivíduos</p><p>de origem popular, cujos projetos de ascensão social passam pelo estudo. É esta</p><p>"lógica do nervoso" que possibilita que o pensar em excesso seja percebido como</p><p>ocasionando efeitos psicológicos e corporais - tais como falta de apetite, insônia,</p><p>tristeza, problema de nervos - e produzindo, assim, importantes conseqüências</p><p>sobre a saúde e, em especial, sobre a saúde mental, culminando com morte.</p><p>Entretanto, os efeitos prejudiciais do pensar não se limitam ao plano psico­</p><p>lógico e corporal, mas implicam também uma espécie de avaliação moral da pes­</p><p>soa. Quem pensa muito é quem tem tempo para fazê-lo - o que indica o não</p><p>cumprimento, ao menos em sua totalidade, de suas atribuições sociais. Dessa</p><p>forma, pensar na doença, identificado como a origem da depressão, compromete</p><p>o status social da mulher, colocando em questão a própria legitimidade de sua</p><p>contaminação. É importante salientar que as mulheres estudadas fazem questão</p><p>de afirmar que foram infectadas pelo marido, dentro de casa, a fim de destacar a</p><p>legitimidade de sua contaminação e, ao mesmo tempo, diferenciar-se dos demais</p><p>doentes da AIDS (homossexuais, prostitutas, promíscuos, usuários de drogas).</p><p>Neste contexto, a disponibilidade de tempo para pensar, se levada às últimas</p><p>conseqüências, corresponde à própria disponibilidade sexual, pois uma mulher/</p><p>mãe que se preze não tem tempo de pensar. Assim, uma das estratégias sugeridas</p><p>pelas próprias mulheres para evitar a depressão é o ocupar-se com as questões</p><p>quotidianas e, principalmente, com o exercício do papel de mãe, como expressa a</p><p>fala de uma informante à outra mulher grávida que acabava de se saber infectada</p><p>pelo HIV:</p><p>Não se deve pensar negativo porque ter AIDS não é assim como a</p><p>gente imagina no começo. A gente logo pensa que o nenê vai nascer</p><p>muito magrinho, sem cabelos... Mas não é isso. Depois tu vais ver...(...)</p><p>No fim, na verdade, nada mudou. Eu até esqueço que eu tenho isso</p><p>porque nada mudou. (...) Tu vais ver, tu mesmo, depois do nascimento</p><p>do nenê tu não vai ter nem mesmo tempo para pensar nesse assunto.</p><p>Daí tu vais ter as fraldas para lavar, a mamadeira para fazer...Tu não</p><p>vai ter tempo nem de pensar. (Fátima, 27 anos)</p><p>Além disso, pensar na doença implica a admissão do "sentimento de cul­</p><p>p a " 8 que é incompatível com a legitimidade da contaminação reivindicada pelas</p><p>mulheres. Uma das formas de demonstrar esta legitimidade é encarar a situação</p><p>com normalidade, isto é, nada mudou. É neste sentido que algumas entrevistadas</p><p>atribuem a depressão de determinadas mulheres ao fato dessas sentirem-se res­</p><p>ponsáveis pela própria contaminação e mesmo, em alguns casos, pela contami­</p><p>nação de outras pessoas (filho, companheiro). E a fim de demarcar sua diferença</p><p>para com estas mulheres, recusam-se a participar nas reuniões do "grupo de mu­</p><p>lheres HIV+" do hospital freqüentadas por estas mulheres que pensam muito na</p><p>doença.</p><p>A depressão aparece ainda relacionada ao ser só, isto é, não ter ninguém de</p><p>quem se ocupar (filhos, marido, consanguíneos). Mas se, por um lado, isto justi­</p><p>fica a depressão visto que o ser só é considerado, de fato, uma situação triste e</p><p>insuportável e, portanto, digna de compaixão, por outro, evidencia também um</p><p>status social que é, no mínimo, duvidoso: por quais motivos uma mulher não</p><p>teria um companheiro e, sobretudo, filhos e família para se ocupar? Não seria em</p><p>função de seu próprio comportamento?</p><p>Assim, seja pela disponibilidade de tempo para pensar na doença, pelo "sen­</p><p>timento de culpa" em relação à contaminação ou pelo questionamento do status</p><p>social, a depressão, na perspectiva das mulheres HIV+, funciona como uma cate­</p><p>goria moral. Seu uso está associado ao encobrimento de uma situação social e</p><p>tem a pretensão de "desculpar" um comportamento - não trabalhar, não se ocu­</p><p>par da casa e filhos, sentir-se vítima da situação, etc. É considerada, neste senti­</p><p>do, uma espécie de futilidade pois somente quem não tem um papel social impor­</p><p>tante a cumprir pode se dar o "luxo" de estar deprimido - tanto que este estado</p><p>aparece vinculado aos grupos sociais dominantes ou, na expressão de uma entre­</p><p>vistada, aos "filhinhos de papai".</p><p>UMA MORTE ANUNCIADA?</p><p>A associação entre AIDS e morte é apontada pelos profissionais da saúde</p><p>como um dos principais fatores das "complicações neuropsiquiátricas" apresen­</p><p>tadas pelas pessoas infectadas pelo HIV. Aparece na origem tanto dos estados</p><p>depressivos, os quais podem, por sua vez estar relacionados a "idéias e pensa­</p><p>mentos de morte e suicídio" (Abreu et al, 1989:121), como dos mecanismos de</p><p>defesa e enfrentamento da situação, dentre as quais a "negação". Mas, como já</p><p>evidenciamos no item anterior, para as mulheres portadoras do vírus da AIDS</p><p>esta associação não justifica a depressão. A compreensão desta não justificativa</p><p>passa pela concepção de morte e tempo acionada pelos membros dos grupos</p><p>populares e sua relação com a situação específica da AIDS.</p><p>A associação entre AIDS e morte é presente também nas representações dos</p><p>membros dos grupos populares, tanto que para muitos a definição de AIDS é a de</p><p>doença que mata9. Para as mulheres infectadas pelo HIV, esta associação se ma-¬</p><p>nifesta, em especial, no momento inicial do diagnóstico, quando pensam que irão</p><p>morrer imediatamente. Entretanto, o maior contato com os profissionais da saúde</p><p>e com outras mulheres na mesma situação e a não manifestação da doença pas­</p><p>sam a funcionar para as mulheres como a prova de que esta morte não é tão</p><p>imediata como pensavam. Dessa forma, a invisibilidade da doença permite tam­</p><p>bém a invisibilidade da própria m o r t e 1 0 .</p><p>A forma pela qual estas mulheres portadoras de uma doença letal conse­</p><p>guem colocar a morte à distância, como se fosse algo que não lhes dissesse res­</p><p>peito, é impressionante. Mesmo que se considerem as explicações psicológicas</p><p>que identificam nesta atitude um mecanismo defensivo e/ou de "negação" da</p><p>doença, 1 1 é necessário admitir que estas atitudes estão estreitamente relaciona­</p><p>das à maneira</p><p>tos se diferencia da história da teoria social contemporânea, principalmente aquela</p><p>verificada no mundo anglo-saxônico, como a dos EUA. Enquanto no Brasil a</p><p>perspectiva estrutural desempenhava um papel paradigmático implícito nos tra­</p><p>balhos relacionados à questão da saúde, nos países anglo-saxônicos as grandes</p><p>instituições de ensino e pesquisa desenvolviam questionamentos e discussões</p><p>exaustivas sobre tal perspectiva.</p><p>Esse fenômeno deve-se em grande parte a emersão de um conjunto de teo­</p><p>rias que fizeram frente a "crise" vivenciada pelo funcionalismo na década de 6 0 5 .</p><p>Contudo, nenhumas dessas teorias assumiu um status paradigmático tal qual re­</p><p>presentado pela Escola de Chicago na década de 20 ou pelo funcionalismo dos</p><p>anos 50. Nesse aspecto, as posições críticas ao funcionalismo não resultaram</p><p>exatamente em uma mera substituição de paradigmas interpretativos mas desper­</p><p>taram, pelo contrário, o aparecimento de uma gama de quadros de referência</p><p>fornecidos pela inspiração e problemática provenientes das contribuições teorético-</p><p>práticas de diversas concepções do social, como o interacionismo simbólico, a</p><p>fenomenologia, a teoria da troca, da escolha racional, o marxismo (Ritzer, 1990).</p><p>As diferentes linguagens científicas levaram, portanto, os pesquisadores a uma</p><p>procura de sínteses entre as grandes perspectivas, a uma busca de outros funda­</p><p>mentos metateóricos para os seus trabalhos, despertando assim uma nova atmos­</p><p>fera intelectual. Não seria ousado afirmar que, de uma maneira geral, as propos­</p><p>tas de síntese estão se convertendo, nesse final de milênio, no tema central das</p><p>ciências sociais. Assim, o retorno aos clássicos, o repudio ao dogmatismo e o</p><p>desmantelamento de velhos e reificados rótulos teóricos constituem marcas</p><p>registradas do pensamento científico contemporâneo.</p><p>No Brasil é nos anos 90 que os estudos sociológicos e antropológicos em</p><p>saúde tendem a acompanhar, ainda que de forma acanhada, os desdobramentos e</p><p>as inquietações metateóricas do pensamento científico contemporâneo. A pers­</p><p>pectiva estrutural, tomada como o único recorte científico do real, parece cada</p><p>vez mais apresentar estagnações e distorções inevitáveis para dar conta de uma</p><p>sociedade complexa como a brasileira. O que estamos vivenciando nos últimos</p><p>anos não é meramente uma substituição de paradigmas mas revisões, apropria¬</p><p>ções de novas interpretações e conceitualizações. Nesse aspecto, os pesquisado­</p><p>res dedicados a temática saúde/doença, principalmente aqueles com formação</p><p>específica em ciências sociais, enfrentam crescentes desafios pois as novas for­</p><p>mulações sistemáticas dos objetos científicos exigem, por parte do investigador,</p><p>um diálogo atento e permanente com o campo teórico-metodológico consolidado</p><p>nesses últimos trinta anos. Nesse processo de revisão crítica-dialógica do passa­</p><p>do intelectual, os pesquisadores devem estar solidamente preparados nos cami­</p><p>nhos (e descaminhos) da teoria social. Faz-se necessário entre os cientistas so­</p><p>ciais trabalhando na área da saúde uma clara consciência do alcance e limites</p><p>tanto dos "antigos" quanto dos "novos" paradigmas. Enfim, como cada vez mais</p><p>se reconhece, é somente pela consideração dos aspectos internos de uma metateoria</p><p>que será possível a construção segura de novos modelos interpretativos que pos­</p><p>sam explicar as mudanças ocorridas no processo saúde-doença e a diversidade (e</p><p>particularidade) das práticas sociais nesse campo.</p><p>TENDÊNCIAS</p><p>Ao discutirmos brevemente no item anterior a formação e desenvolvimento</p><p>do campo social da saúde no Brasil, observamos que as concepções histórico-</p><p>estutural ou funcional-estruturalista e (pós) estruturalista constituíram até o final</p><p>da década passada os grandes paradigmas implícitos de análise. Levantamos a</p><p>tese de que esse quadro começa a se reverter na atual década. A tendência de</p><p>transformação verificada é substancial em vários aspectos pois não representa</p><p>apenas uma simples mudança de quadro de referência teórica mas de perspectiva</p><p>analítica (metateórica). Nesse aspecto, até os inícios dos anos 90, a inspiração e</p><p>problemáticas provenientes das contribuições de autores como Althusser ou</p><p>Foucault, para citarmos apenas dois exemplos, não significaram necessariamente</p><p>mudanças metateóricas na interpretação dos fenômenos humanos; apenas indica­</p><p>ram diferentes formulações conceituais ou processos discursivos 6 . Na década de</p><p>90, esse tipo de referencial é mantido mas, devido a concretização e legitimação</p><p>de um conjunto de "novas" (ou revitalizadas) abordagens sobre o social 7 basea­</p><p>das em outros pressupostos e princípios metateóricos, têm surgido novas propos­</p><p>tas de sínteses teórico-metodológicas por parte dos nossos pesquisadores. Pode-</p><p>se observar esse fato na utilização cada vez mais constante de autores como Schutz,</p><p>Goffman, Garfinkel, Berger ou mais recentes, como Habermas, Bourdieu, Giddens</p><p>e outros. Um aspecto significativo desse processo é que já não existe uma teoria</p><p>que possa ser considerada como propriamente paradigmática nos estudos sociais</p><p>sobre a saúde/doença. Assim, como é de se esperar, as (re)formulações e/ou sín­</p><p>teses teórico-metodológicas que vem sendo propostas nos últimos anos têm exi­</p><p>gido, por parte do pesquisador, um constante diálogo crítico com um campo</p><p>conceituai já consolidado. Nesse diálogo, as teorias "tradicionais" estão sendo</p><p>reavaliadas, submetidas, em maior ou menor grau, a uma crítica interna de tal</p><p>forma que possam incorporar outras correntes do pensamento social.</p><p>Esse fenômeno reflete uma tendência - um tanto universal - de se buscar em</p><p>outras concepções teóricas, notadamente às compreensivas, um campo de diálo­</p><p>go mais estreito entre as diversas concepções do social. Não é, portanto, um fato</p><p>peculiar dos estudos sócio-antropológicos em saúde. Nos últimos anos há um</p><p>forte movimento da teoria social em estabelecer uma integração ou síntese(s) de</p><p>diferentes abordagens conceituais (ver Alexander, 1987; Collins, 1981; Knorr-</p><p>Cetina & Cicourel, 1981; Ritzer, 1990). Contudo, nos estudos brasileiros sobre</p><p>saúde, o desenvolvimento dessa tendência ainda está em uma fase preliminar</p><p>uma vez que, quando procuram uma integração entre diferentes perspectivas e</p><p>abordagens, os trabalhos produzidos nesse campo o fazem como se estivessem</p><p>lidando com pólos teóricos opostos, dicotômicos, que devem ser conciliados.</p><p>Síntese, é importante lembrar, não significa somatório e tampouco ecletismo mas</p><p>fusão de proposições e processos lógicos de articulações mediante a introdução</p><p>de um ponto de vista específico, apriorístico. Para se atingir esse objetivo, é ne­</p><p>cessário que os pesquisadores retornem constantemente aos próprios fundamen­</p><p>tos metateóricos das suas premissas e não apenas à um mero arranjo entre dife­</p><p>rentes abordagens. Essa tarefa não é algo simples pois qualquer tentativa de sín­</p><p>tese deve ser sempre precedida por uma análise.</p><p>Assim, para melhor explicitar a nossa tese - o processo de transformação</p><p>teórico-metodológica que ocorre atualmente nos estudos sobre a saúde/doença -</p><p>torna-se necessário precisar a própria natureza dessa transformação. Para tal, par­</p><p>timos do princípio que os fundamentos e pressupostos implícitos das pesquisas</p><p>em ciências sociais e saúde podem ser dividido em grandes perspect ivas</p><p>interpretativas. Utilizamos o termo perspectiva interpretativa como uma espécie</p><p>de matriz do conhecimento, que embora não tome a forma de regras explicitas e</p><p>não seja verificada à luz da experiência, condiciona ou orienta um determinado</p><p>corpo teórico em sua totalidade pela sugestão de problemas-tipos e soluções. A</p><p>perspectiva se constitui em um "tipo-ideal" do conhecimento que enfatiza deter­</p><p>minados aspectos da realidade humana e faz emergir um conjunto de idéias e</p><p>h ipó teses que se rvem de guia para as d i s t in tas a b o r d a g e n s t e ó r i c a s e</p><p>epistemológicas sobre os fenômenos sócio-culturais. Uma vez que uma perspec­</p><p>de viver e à visão de mundo dos grupos populares. Pois, se aparen­</p><p>temente elas podem assemelhar-se ao comportamento de outros grupos, as moti­</p><p>vações destas vão em sentido contrário.</p><p>Primeiramente, cabe salientar a presença desigual da morte nos diferentes</p><p>grupos sociais. A ameaça concreta da morte é muito mais presente nas camadas</p><p>mais desfavorecidas da população do que nas camadas privilegiadas. Os mem­</p><p>bros destas camadas desprivilegiadas estão, cotidianamente, expostos a condi­</p><p>ções de vida muito precárias (alimentação e moradia inadequadas), às deficiên­</p><p>cias do sistema de saúde, às péssimas condições de trabalho e a situações de</p><p>violência quotidiana (brigas de gangs de tráfico de drogas, conflitos com a polí­</p><p>cia, roubos e disputas domést icas) 1 2 . Assim, para as mulheres H1V+, a presença</p><p>da morte é uma realidade que independe da doença. A AIDS é apenas uma amea­</p><p>ça a mais, um risco que vem se juntar aos demais. Além do que, é uma ameaça</p><p>que pode, de certa forma, ser controlada através da adoção de medidas preventi­</p><p>vas que visam evitar as doenças oportunistas associadas à A I D S 1 3 . É neste senti­</p><p>do que, ao falar da letalidade da AIDS, as entrevistadas fazem questão de enfatizar</p><p>que "se pode morrer de qualquer outra coisa", sendo a AIDS um risco adicional e</p><p>não, necessariamente, o principal. O depoimento de uma delas explicita esta con­</p><p>cepção:</p><p>Tá certo, a AIDS é mortal, mas na verdade isso não quer dizer</p><p>que a gente vai morrer por causa disso. A gente pode morrer de qual­</p><p>quer outra coisa. Tinha até uma mulher que morava ali em baixo, ela</p><p>estava gorda e parecia bem de saúde, mas ela morreu em menos de</p><p>uma semana por causa de um câncer. Ninguém podia imaginar que</p><p>ela estava doente e quando eles levaram ela para o hospital já era</p><p>muito tarde. Já uma outra mulher que mora aqui do lado e que tem</p><p>AIDS estava super mal no hospital. Ninguém acreditava que ela ia</p><p>sair de lá e, entretanto, ela voltou para casa e está muito bem. (Janira,</p><p>19 anos)</p><p>As mulheres têm sempre uma história a contar para confirmar a tese de que</p><p>a morte independe dos fatores tidos como mais prováveis, como demonstra o</p><p>relato acima. A morte é vista como parte da vida, como um fenômeno natural que</p><p>pode ou não aparecer associado a uma doença. Por outro lado, a maioria das</p><p>entrevistadas já teve um contato próximo com a morte, seja de um filho ou com­</p><p>panheiro, seja de um familiar. Muitas delas vivenciaram a proximidade da morte</p><p>em seus próprios corpos em função de um acidente, de uma doença grave ou</p><p>mesmo de uma tentativa de suicídio. Esta proximidade da morte não permite que</p><p>estas mulheres compartilhem do sentimento de imortalidade que, segundo Ariés</p><p>(1975), constitui uma das principais características da sociedade oc iden ta l 1 4 .</p><p>As mulheres não se percebem como imortais também pelo fato de pertence­</p><p>rem a uma família, a uma rede de consangüíneos que assegura uma continuidade</p><p>apesar da ausência de alguns de seus membros. Nesta perspectiva, o desejo de ter</p><p>um filho manifestado pelas mulheres não pode ser tomado como expressão do</p><p>desejo de imortalidade, tal como o fazem algumas interpretações psicológicas. É</p><p>antes, o cumprimento de um papel social de dar um descendente ao companheiro</p><p>e aos consangüíneos. Como afirma Héritier a respeito da demanda pelas novas</p><p>tecnologias reprodutivas: "parece que podemos falar sobretudo de um desejo de</p><p>descendência e de um desejo de realização, mais do que um desejo de filho, e da</p><p>necessidade de cumprir um dever para consigo próprio e com a coletividade,</p><p>mais do que a reivindicação de um direito à possuir"(Héritier, 1985:10).</p><p>E é justamente por verem a morte como parte da vida e não, necessariamen­</p><p>te, como dependente de uma causa predeterminada, que as mulheres soropositivas</p><p>não aceitam a insistência dos psicólogos e psiquiatras em lhes lembrar que a</p><p>AIDS é uma doença mortal. Esta discordância faz com que as mulheres "abando­</p><p>nem" o acompanhamento psicológico, como expressa uma entrevistada:</p><p>Ele [o psicólogo] me disse que eu tinha que saber que agora não é</p><p>mais como antes porque eu estou doente e vou morrer. Eu saí de lá</p><p>muito triste e nunca mais quis voltar. Vê bem se isso é uma coisa que se</p><p>diga para alguém! Eu sei que eu vou morrer, mas eu ainda não estou</p><p>doente. Para que pensar nisso? (Solange, 28 anos)</p><p>O que incomoda as mulheres não é o fato de falar na morte, mas sim fazer</p><p>dela um problema atual. Se o futuro está ainda distante, é melhor viver o presente</p><p>sem a interferência das previsões futuras. Assim, não estando ainda doentes, por</p><p>que deverão se inquietar no presente a partir da projeção do futuro?</p><p>Por outro lado, existe uma série de problemas mais urgentes que preocupam</p><p>as mulheres - por exemplo, os cuidados dispensados aos filhos, o orçamento</p><p>doméstico, o desemprego do marido - fazendo com que não tenham nem mesmo</p><p>tempo para pensar na doença. Além do que, preocupar-se com uma coisa tão</p><p>distante e "pessoal" como é a AIDS, seria inadmissível e suscetível a críticas e</p><p>julgamentos morais pois, como já evidenciamos, o pensar em demasia implica o</p><p>não cumprimento do papel social.</p><p>Na verdade, preocupar-se com a própria morte pressupõe uma concepção</p><p>individualista da pessoa, o que não encontra respaldo entre os membros dos gru­</p><p>pos popula res 1 5 . Quando as mulheres manifestam alguma preocupação em rela­</p><p>ção à morte é sempre em função dos filhos e/ou marido. E, neste sentido, não são</p><p>seus projetos pessoais que estão em questão, mas sim quem irá assumir seu papel</p><p>social, ou seja, quem irá lhes substituir no cuidado das crianças e do cônjuge.</p><p>Assim, são justamente aquelas mulheres que não dispõem de um suporte familiar</p><p>para assegurar este cuidado, bem como àquelas que não possuem ninguém de</p><p>quem se ocupar, as que mais se inquietam com a própria morte.</p><p>A morte é sempre pensada em termos relacionais, isto é, em relação às</p><p>conseqüências que ela poderá ocasionar às pessoas mais próximas e, em especial,</p><p>às crianças. Ter alguém para cuidar, alguém que precisa de ti é também ter uma</p><p>razão para viver, é ter um lugar na estrutura familiar e, portanto, exercer uma</p><p>função social.</p><p>ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS</p><p>Este artigo buscou compreender a leitura que as mulheres portadoras do ví­</p><p>rus da AIDS têm da relação, frequentemente estabelecida pelo discurso psicoló­</p><p>gico/psiquiátrico, entre depressão, morte e AIDS. É importante salientar que não</p><p>estamos negando a existência de manifestações de ordem psíquica associadas à</p><p>doença. Entretanto, nosso eixo de análise privilegiou a interpretação que as pró­</p><p>prias mulheres dão a estas manifestações.</p><p>Na perspectiva das mulheres HIV+ pertencentes aos grupos populares, a</p><p>AIDS e suas implicações não justificam a depressão, pois esta é atribuída ao</p><p>pensar em demasia sobre a situação e não à doença em si. Entretanto, se a causa</p><p>aparente da depressão é o pensar, que produz efeitos físicos e emocionais, po­</p><p>dendo levar mesmo à morte, a "verdadeira" causa da depressão é, de fato, uma</p><p>condição social. Ou seja, só pensa tanto a ponto de provocar uma depressão pri­</p><p>meiro, quem tem tempo para tal e segundo, quem se percebe como responsável</p><p>pela contaminação, isto é, quem procurou a doença.</p><p>Outro fator importante a ser considerado para a compreensão de como uma</p><p>categoria diagnóstica é transformada em uma categoria moral é o caráter indivi­</p><p>dualista que reveste a categoria depressão. Primeiro, a depressão é um sentimen­</p><p>to individual, que implica, em certo sentido, um rompimento com o social. O</p><p>próprio pensar associado pelas mulheres soropositivas à depressão é, por si mes­</p><p>mo, um ato individual, que pressupõe interiorização e individualização, como</p><p>indica o axioma cartesiano "penso, logo existo". Segundo, este pensar implica</p><p>também um pensar sobre si, sobre a sua situação, indicando uma preocupação</p><p>consigo próprio e, portanto, individualista. A própria associação da depressão</p><p>tiva constitui um "tipo-ideal", não é representada integralmente por nenhuma</p><p>teoria.</p><p>Uma das principais problemáticas teóricas das ciências sociais diz respeito à</p><p>questão da mediação entre o agente social e a sociedade, entre o indivíduo e as</p><p>estruturas sociais, entre subjetividade e objetividade. Tomando-se em considera­</p><p>ção essa problemática, é possível dividir as teorias sociais em duas grandes pers­</p><p>pectivas interpretativas. A primeira agrupa uma série de teorias que podem ser</p><p>denominadas como estruturais, macro-analíticas, substantivas, objetivistas. As¬</p><p>sim, o culturalismo, o funcionalismo, o estruturalismo, o pós-estruturalismo, o</p><p>marxismo estrutural, embora apresentem diferenças teóricas significativas entre</p><p>si, são usualmente consideradas como exemplos dessa perspectiva. A segunda,</p><p>denominado como compreensiva, subjetivista, atomista ou micro-analítica, é ge­</p><p>ralmente atribuída a orientações como o interacionismo simbólico e teorias de</p><p>base fenomenológica (etnometodologia, análise conversacional, etc.). É necessá­</p><p>rio, contudo, ressaltar que o enquadramento de teorias nesses dois tipos de orien­</p><p>tações metateóricas corre o risco de ser um tanto apressado e superficial. Para</p><p>essa modalidade de análise o que é mais importante é explicitar os fundamentos e</p><p>princípios de uma perspectiva do que rotular uma dada teoria.</p><p>Concentraremos a nossa análise sobre a perspectiva estrutural, tendo em vis­</p><p>ta a predominância e o caráter paradigmático que ela exerce nos estudos sociais</p><p>em saúde no Brasil e é a partir dela que boa parte dos nossos pesquisadores têm</p><p>re-elaborado "novas" leituras ou sínteses interpretativas sobre os fenômenos só¬</p><p>cio-culturais.</p><p>A perspectiva estrutural parte do pressuposto de que a natureza da realidade</p><p>social é objetiva, isto é, composta de estruturas de idéias, valores, modelos ou</p><p>estruturas materiais de relações. Tais estruturas não são atributos de indivíduos,</p><p>estão além de qualquer consciência individual e estabelecem quadros que limi­</p><p>tam e possibilitam as ações dos atores sociais. Embora não sejam necessariamen­</p><p>te acessíveis a observação direta, essas estruturas podem ser "reveladas" pelos</p><p>conceitos científicos pois estes possuem a capacidade de penetrar na realidade</p><p>que está subjacente aos eventos particulares. Essa perspectiva tende, portanto, a</p><p>estabelecer uma dicotomia entre indivíduo e sociedade, entre subjetividade e</p><p>objetividade, desde que separa como entidades distintas e heterogêneas a consciên­</p><p>cia do sujeito e o mundo exterior.</p><p>A perspectiva estrutural se fundamenta na convergência de alguns princí­</p><p>pios pertencentes a duas grandes vertentes filosóficas: racionalismo e empirismo.</p><p>Essas vertentes, em muitos aspectos, são opostas entre si. A concepção racionalista</p><p>caracteriza-se pela desconfiança dos fatos que são dados imediatamente pela ex­</p><p>periência sensível; a empiricista, pela cautela e dúvida frente as categorias, ope­</p><p>rações abstratas e auto-suficientes da razão. Tais pressupostos, contudo, não se</p><p>constituem verdadeiras contradições. Em primeiro lugar, ambas estão diretamen­</p><p>te ligadas ao idealismo. Para o idealismo, as coisas existentes no mundo são ilu­</p><p>minadas pela atividade conceituai, pois a realidade é algo a ser conquistado pela</p><p>construção do sujeito pensante. A existência da realidade, portanto, necessita ser</p><p>demonstrada, deduzida ou construída.</p><p>A concepção racionalista de Descartes é paradigmática. Para ele, o ser das</p><p>coisas é o pensamento puro, o eu pensante. O campo do entendimento (o pensa­</p><p>mento puro) é objeto da lógica e da epistemologia enquanto que a imaginação e</p><p>as sensações pertencem ao domínio corporal, objeto da "psicologia". Nesse as¬</p><p>pecto, Descartes reduz o mundo a uma pura substancialidade geométrica e o ho­</p><p>mem, excetuando as suas categorias do entendimento puro, a um objeto mecani­</p><p>zado. Essa concepção racionalista irá encontrar em Leibniz a sua forma mais</p><p>acabada. Ao estabelecer uma distinção entre verdades de fato (originadas na ex­</p><p>periência) e verdades de razão (inatas, a priori), Leibniz observou que o universo</p><p>apresenta duas faces: uma delas é a dos objetos materiais, seus movimentos - o</p><p>mundo fenomênico, tal como o percebemos e o sentimos - a outra, as verdadeiras</p><p>realidades. Contudo, não existe uma incomensurabilidade entre essas duas "rea­</p><p>lidades" pois a objetividade das verdades de fato vem de que todas elas se susten­</p><p>tam, têm uma base no princípio de razão suficiente. Nesse aspecto, a concepção</p><p>cartesiana da passagem de idéias confusas (sensações, percepção e experiência</p><p>sensíveis) à idéias claras (pura racionalidade) é possível pois, segundo Leibniz,</p><p>as idéias confusas contém no seu seio idéias claras. Consequentemente, o ideal</p><p>de conhecimento é o ideal da pura racionalidade e toda ciência empírica deve se</p><p>esforçar por tornar mais cada vez mais vastos seus territórios de verdades de</p><p>razão.</p><p>A tradição racionalista admite, portanto, a existência de um ser absoluto,</p><p>uma idéia reguladora, tomada como ponto de partida para a explicação da reali­</p><p>dade humana. O absoluto é concebido de forma sistêmica, a essência mesma das</p><p>coisas, e se manifesta, fenomenaliza-se, no tempo e no espaço. A idéia de</p><p>cientificidade imbutida nessa concepção consiste na apreensão desse absoluto. A</p><p>ciência é uma operação discursiva, sistemática e dedutiva que objetiva explicitar</p><p>as diversas formas pelas quais o absoluto se "materializa" no mundo, na história.</p><p>O empirismo, por sua vez, desenvolve um ponto de vista "psicológico" para</p><p>responder as questões colocadas pelo pensamento cartesiano. Para Hume, os fa­</p><p>tos psíquicos são idênticos ao modo de ser das coisas. As idéias, reproduções de</p><p>impressões sensíveis, são resultados de processos associativos oriundos da expe­</p><p>riência humana. Nesse aspecto, o empirismo considera as coisas existentes no</p><p>mundo exterior não como realidades em si e por si mas como construções funda­</p><p>mentadas em leis psicológicas pois se só encontro vivências (feixes de sensa­</p><p>ções), não há substâncias nem corpos. Por conseguinte, posso apenas crer na</p><p>realidade de um mundo exterior. A psicologia invade tudo. Contudo, Hume ad­</p><p>mite que a ciência é possível, que há crenças comuns em todos os homens, pois o</p><p>homem é um ser de ação, necessita atuar e para tal necessita contar com certas</p><p>regularidades. Ciência, portanto, é descoberta de regularidades (crenças) que</p><p>adquirem, pouco a pouco, o caráter de verdade (probabilidades indutivas). Hume</p><p>propõe que o pesquisador, ao procurar realizar uma descrição objetiva de uma</p><p>"realidade", comece o seu trabalho definindo primeiramente o método para em</p><p>seguida aplicá-lo ao objeto.</p><p>Tanto o racionalismo como o empirismo compartilham de alguns princípios,</p><p>como a crença na razão (em níveis diferenciados) como uma propriedade univer¬</p><p>sal do homem e a concepção de uma mesma natureza humana comum a toda a</p><p>espécie, ou segundo uma versão mais "antropológica", comum aos membros de</p><p>uma determinada sociedade. A síntese comtiana dessas duas vertentes do pensa­</p><p>mento humano fundamenta, em última instância, um dos principais pressupostos</p><p>metateóricos da perspectiva estrutural. Um traço significativo do positivismo é</p><p>sua hostilidade a toda dedução que não esteja baseada em dados imediatos da</p><p>experiência. Entretanto, como herdeiro da tradição racionalista, advoga que a</p><p>ciência, através de princípios racionais é capaz de explicitar as leis que regula­</p><p>mentam à natureza humana.</p><p>O pressuposto idealista da perspectiva estrutural, por sua vez, não se contra­</p><p>põe a um postulado realista de que as estruturas (modelos, códigos, etc.)</p><p>subjacentes as atividades humanas são entidades exteriores às consciências indi­</p><p>viduais e exercem (ou são suscetíveis de exercer) ações coercitivas sobre elas. A</p><p>coercitividade, nessa perspectiva, é usualmente pensada quer em termos de fato­</p><p>res condicionantes da ação, sejam eles externos (condições de vida</p><p>material, o</p><p>estado econômico ou político, etc.) ou internos (inconsciente, necessidades bio­</p><p>lógicas, estigmas hereditários, e t c ) , quer no modelo mais sofisticado de uma</p><p>modelagem cultural e social dessa ação, que no limite converte o sujeito, de</p><p>utilizador de um código cultural em, ele mesmo, elemento desse código. Trata-</p><p>se, contudo, de idéia que não é exatamente clara ou que é mesmo contraditória</p><p>pois, ao admitir o condicionamento, não nega necessariamente que o indivíduo</p><p>as vezes também tem poder de decisão.</p><p>A idéia de estrutura, nessa perspectiva, assume um papel essencial. A in­</p><p>fluência do modelo saussuriano no delineamento do conceito é marcante. Assim,</p><p>a estrutura é usualmente tomada como coletiva, anônima, abstrata, sistemática,</p><p>autônoma, compulsória para uma dada realidade social; reflete a unidade ou ca­</p><p>ráter holista do social e, em muitas abordagens, é vista como situando-se no tem­</p><p>po de forma sincrônica. Sendo configurada como sistema, pressupõe um conjun­</p><p>to finito de entidades discretas, relacionadas intrinsecamente entre si, que se re­</p><p>metem para um todo. Nenhuma entidade tem um significado por si mesma pois</p><p>cada elemento se define por um outro, pela sua oposição ou relações internas</p><p>com outras unidades do mesmo sistema. Nesse aspecto, o mundo é reduzido a</p><p>relações, diferenças. Esse pressuposto tem uma implicação direta com a investi­</p><p>gação científica. A principal tarefa das ciências é explicitar os processos relacionais</p><p>implícitos de um dado sistema. O que a ciência apreende, portanto, é o aspecto</p><p>sintático dos fatos sócio-culturais. Como observam Bruyne et al. (1977: 189),</p><p>"Nenhum universo semântico é pesquisado por si mesmo - como na construção</p><p>de um tipo-ideal compreensivo - só é pesquisado o invariante sintático latente</p><p>sob as significações manifestas".</p><p>Acreditamos que é justamente a idéia de estrutura limitada apenas a esses</p><p>parâmetros que constitui o primeiro ponto problemático dessa perspectiva pois,</p><p>entre outros aspectos, essa concepção não leva em devida consideração como um</p><p>dado sistema é construído a partir de determinadas condições nem tampouco como</p><p>os sistemas são substituídos uns pelos outros. As transformações são considera­</p><p>das como meras contingências. Nessa perspectiva, "a história aparece como um</p><p>fenômeno puramente passivo, seja porque a estrutura contêm em si, desde a ori­</p><p>gem, os seus germes de morte, seja porque um acontecimento exterior a destrói</p><p>(...) Quando não morre de morte natural, a estrutura sucumbe por acidente. Mas</p><p>nunca são os homens, eles próprios, que a modificam, porque não são eles que a</p><p>fazem: pelo contrário, eles são feitos por ela" (Sartre, 1967:129). Ao considerar</p><p>a história um conjunto de totalidades fechadas, tais teorias perdem de vista o</p><p>próprio movimento social, a dinamicidade, a totalização-em-curso.</p><p>A questão do "decentramento" do sujeito, para utilizarmos uma expressão</p><p>de Lacan, é talvez a mais problemática na perspectiva estrutural. É importante</p><p>observar, em primeiro lugar, que essa perspectiva não elimina necessariamente o</p><p>indivíduo mas, de forma ambígua, o coloca em uma posição secundária. O ator</p><p>social é visto, antes de mais nada, como um ponto de encontro de forças sociais</p><p>ou como elemento de um código, segundo uma concepção que diferencia o indi­</p><p>víduo empírico do ator social (este último, mera ideologia). Nesse aspecto, a</p><p>perspectiva estrutural termina por tornar-se, no dizer de Husserl (1973), natura­</p><p>lista, isso é, por abraçar uma posição espistemológica que, não tendo destacado a</p><p>especificidade do objeto social ou psíquico, trata-o como se fosse um objeto físi­</p><p>co, confundindo assim causas externas com a própria natureza do fenômeno 8 .</p><p>Uma conseqüência dessa postura é de considerar o sujeito como uma coisa entre</p><p>outras coisas existentes no mundo. Assim como faz sobressair as coisas com suas</p><p>características objetivas exatas, essa perspectiva termina por levar o psíquico a</p><p>uma determinação objetivamente válida (leis rígidas). Nesse aspecto, a subjetivi­</p><p>dade torna-se uma grande ausência.</p><p>Como conclusão dessa análise crítica, podemos observar que a perspectiva</p><p>estrutural não deixa de ter razão em apontar o caráter estruturado da realidade</p><p>humana. Mas é necessário reconhecer os limites dessa postura. A idéia de estru­</p><p>tura não apreende toda a realidade humana, apenas parte dela. Qualquer teoria</p><p>que se desenvolva apenas nos estreitos limites do conceito de estrutura como</p><p>algo a priori, como esquemas ou modelos sócio-culturais coercitivos, tende a</p><p>reduzir as atividades humanas à conceitos abstratos, usando de uma única inter­</p><p>pretação para explicar a diversidade das ações sociais. Um ponto frágil dessa</p><p>perspectiva está justamente na sua concepção de realidade objetiva. Trata-se de</p><p>uma concepção que não "retorna às coisas mesmas" pois de antemão estabelece</p><p>"verdades" sobre as coisas e com isso não se atém a existência concreta do ho­</p><p>mem no seu cotidiano. Por menosprezar a dimensão subjetiva e, principalmente,</p><p>intersubjetiva dos indivíduos que compõem uma dada configuração sócio-cultu¬</p><p>ral, essa perspectiva termina por falar do humano - o objeto por excelência das</p><p>ciências sociais - como uma realidade sem vida, entidade quase morta, subsumido</p><p>à forças onipotentes de uma estrutura. Em termos metodológicos, é necessário</p><p>que a explicação - ato cognitivo por excelência dessa perspectiva - venha a cul­</p><p>minar com a compreensão das ações humanas, com uma hermenêutica crítica da</p><p>existência humana.</p><p>CONCLUSÃO</p><p>Começamos o presente capítulo apresentando um rápido esboço sobre o per­</p><p>fil do profissional em ciências sociais em saúde no Brasil. Observamos que a</p><p>produção brasileira nessa área está sendo cada vez mais desenvolvida por pes­</p><p>quisadores que possuem uma formação específica no campo das ciências sociais.</p><p>Isso não significa dizer que atualmente temos uma menor heterogeneidade entre</p><p>os nossos cientistas. A produção da área, a proliferação de novos objetos de estu­</p><p>dos, a diversidade de instituições de ensino e pesquisa interessadas nessa temática</p><p>e a variedade de enfoques teórico-metodológicos revelam a pluralidade do nosso</p><p>mundo acadêmico. Em segundo lugar, desenvolvemos a tese de que os funda­</p><p>mentos das formulações conceituais (subjacentes a uma perspectiva estrutural)</p><p>que predominaram no campo das ciências sociais em saúde estão sofrendo, no</p><p>decorrer da atual década, um processo de re-análise e novas tentativas de sínte­</p><p>ses, principalmente a nível metateórico, estão sendo postas em prática. Esse pro­</p><p>cesso se deve, em grande parte, a concretização e legitimação de teorias sociais</p><p>(clássicas e contemporâneas) que passam a ser incorporadas por nossos pesqui­</p><p>sadores. Nesse aspecto, o êxito dos diversos projetos de reformulações conceituais</p><p>requer uma melhor compreensão dos fundamentos e princípios das perspectivas</p><p>interpretativas que caraterizam as ciências sociais.</p><p>Os pontos enfocados no presente capítulo revelam duas grandes tendências</p><p>(entre outras que poderiam ser mencionadas) do cenário acadêmico nacional.</p><p>Um não se constitui necessariamente a razão ou causa do outro. As novas tendên­</p><p>cias registradas na análise dos fenômenos relacionados à saúde/doença podem</p><p>estar ligadas a formação atual do nosso profissional. Somente uma análise mais</p><p>criteriosa poderia estabelecer a natureza dessa ligação.</p><p>REFERÊNCIAS</p><p>ABRASCO (1995). Catálogo Brasileiro de Cientistas Sociais em Saúde. 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Na produção brasileira podemos citar Freitas (1935), Andrade</p><p>(1939),Teixeira (1956), Meneses (1957), Campos (1958), Bastide (1959) e Araújo (1959), entre</p><p>outros.</p><p>2 Foram os Departamentos de Medicina Preventiva e Social da USP, de Medicina Preventiva</p><p>e Social da Unicamp, o Instituto de Medicina Social da UERJ e os Programas de Estudos Sócio-</p><p>Econômicos em Saúde (PESES) e de Estudos e Pesquisas Populacionais e Epidemiológicas (PEPPE)</p><p>os primeiros a implementar e/ou consolidar a área das ciências sociais em saúde. Em 1978, confor­</p><p>me levantamento realizado pela F1NEP, existiam 16 instituições que desenvolviam investigações</p><p>nessa área. Dentre elas, apenas um departamento de ciências sociais (Departamento de Sociologia</p><p>da PUC/RJ) elaborava projetos sobre a temática saúde (Teixeira, 1985).</p><p>3 Segundo Campos & Nunes (1976) dos 323 professores que em 1971 estavam "envolvidos"</p><p>no ensino de ciências sociais na saúde, apenas 17,6% tinham formação básica na área das ciências</p><p>sociais.</p><p>4 A pesquisa tomou dois critérios para identificar os cientistas sociais: estar vinculado à área</p><p>de saúde no serviço, ensino e pesquisa; e ter formação graduada ou pós-graduada em disciplinas</p><p>tradicionalmente incluídas nas Ciências Sociais e Humanas (Sociologia, Antropologia, Ciências</p><p>Políticas, História, Pedagogia, Economia, Demografia e Filosofia).</p><p>5 Não é apropriado afirmar que o funcionalismo perdeu sua legitimidade teórica apartir dos</p><p>anos 60. A influência dessa concepção,</p><p>principalmente a desenvolvida por Parsons, está atualmente</p><p>presente no "neo-funcionalismo" (J.Alexander, P.Colomy, N. Luhmann, C. Camic, R.Munch) e em</p><p>uma série de teóricos contemporâneos, como A. Giddens, Habermas, entre outros.</p><p>6 Consideramos como processos discursivos parâmetros teóricos e metodológicos que delimi­</p><p>tam uma lógica de investigação. Esses processos, intrinsecamente ligados a princípios</p><p>epistemológicos, determinam a forma pela qual é construída uma problemática e o referencial teó­</p><p>rico de uma pesquisa (Bruyne et al., 1977).</p><p>7 O conceito de "novo" deve ser aqui entendido no sentido do contexto brasileiro. Tratam-se,</p><p>na realidade, de teorias que já apresentam uma longa tradição na história das ciências sociais, prin­</p><p>cipalmente no mundo anglo-saxônico.</p><p>8 "O que caracteriza todas as formas do naturalismo extremo e conseqüente, que vai do mate­</p><p>rialismo popular às formas recentes do monismo sensualista e do energetismo, é, por um lado a</p><p>naturalização da consciência, inclusive a de todos os dados intencionais imanentes da consciência;</p><p>por outro, a naturalização das idéias e, por conseguinte, de todo ideal e de toda norma absoluta"</p><p>(Husserl, 1973:50, itálico do autor).</p><p>CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE</p><p>DA ANTROPOLOGIA NA ÁREA DE</p><p>SAÚDE: O CASO BRASILEIRO</p><p>Maria Cecília de Souza Minayo</p><p>INTRODUÇÃO</p><p>Neste artigo proponho realizar uma discussão sobre o estado da arte da an­</p><p>tropologia no campo da saúde no Brasil, a partir de revisões já elaboradas por</p><p>alguns autores, e levantar pontos que julgo importante assinalar como desafios,</p><p>caminhos de possibilidades e rumos a serem tomados, nesta relação. A hipótese</p><p>aqui levantada é de que existe um campo de conhecimentos em plena efervescência</p><p>e em construção de sua própria identidade.</p><p>Este estudo não tem pretensões de aprofundamento epistemológico e sim, de</p><p>acompanhar e descrever o movimento de constituição dessa nova "interdisciplina",</p><p>ou seja a rede de produção e de reprodução do saber e das práticas antropológicas</p><p>que, por sua vez, se incorporam ao campo da saúde. Para tal recorrerei a alguns</p><p>conceitos e noções da sociologia da ciência, tais como "rede", "campo", "comu­</p><p>nidade científica" e outros.</p><p>Utilizo o termo "rede" tal como vem sendo usado recentemente no âmbito</p><p>da teoria das organizações. Ou seja, como uma noção que define as articulações</p><p>entre indivíduos, núcleos e instituições, criando conexões por onde circulam in­</p><p>formações, criam-se elos e constituem-se "focos de irradiação" de concepções,</p><p>práticas e referências. O conceito de campo científico foi desenvolvido por</p><p>Bourdieu (1983) para significar o espaço estruturado de lutas pelo monopólio da</p><p>autoridade, da competência e do crédito científico, dentro das mesmas leis e inte­</p><p>resses que regem a acumulação de capital. Bourdieu faz uma crítica profunda ao</p><p>conceito de comunidade científica desenvolvido por Kuhn (1982) que idealizava</p><p>esse grupo social como autônomo, insulado e auto-reprodutor, demonstrando como</p><p>a competição, a desigualdade, os interesses, o conservadorismo e as resistências</p><p>estão na lógica de organização da prática científica.</p><p>Na perspectiva de Latour & Woolgan (1979) que enaltecem a importância</p><p>de se conhecerem etnograficamente os laboratórios e grupos de pesquisar é preci­</p><p>so relativizar a idéia de "ciência enquanto mercadoria" desenvolvida por Bourdieu.</p><p>Para esses autores, a informação produzida por cientistas adquire valor enquanto</p><p>serve a outros para se gerarem novas informações, havendo uma clara associação</p><p>entre o ciclo do cientista e o ciclo de investimento do capital. Mas o sentido do</p><p>crédito científico está mais vinculado a sua credibilidade e ao poder do que ao</p><p>capital econômico propriamente dito.</p><p>O conceito de "prática científica " de Knorr-Cetina (1982) também é impor­</p><p>tante para os objetivos deste trabalho. A autora faz críticas aos estudos que to­</p><p>mam a comunidade científica como uma unidade organizacional independente.</p><p>Propõe, ao invés, o conceito de arena transepistêmica e campos transcientíficos</p><p>para designar o espaço das interações. Para a autora, o trabalho científico é per­</p><p>passado e sustentado por relações e atividades que transcendem os laboratórios e</p><p>grupos de pesquisa. No seu cotidiano, estão permanentemente confrontados por</p><p>pessoas e argumentos que não podem ser classificados nem como puramente</p><p>científicos e nem como não-científicos. Nesse campo ou arena transitam deman­</p><p>das acadêmicas, sociais, de agências de financiamento, das indústrias, do estado,</p><p>das instituições, assim como parcerias e trocas científicas e de cientistas envolvi­</p><p>dos na negociação e administração de recursos. De acordo com Knorr-Cetina, as</p><p>arenas transepistêmicas são constituídas, dissolvidas e reconstituídas na cotidia­</p><p>na e contextualizada atividade cientifica, implicando sempre numa rede interativa</p><p>de relações entre os vários sujeitos que dela participam, em mútua dependência</p><p>de informações, recursos e tecnologias. Os interesses, os conflitos de poder e a</p><p>cooperação são parte dessa dinâmica dentro dos universos de produção e com</p><p>todo o mundo relacionai, inclusive o leigo, envolvido na construção da ciência.</p><p>Desta forma, este artigo se insere nesse universo movimentado e dinâmico</p><p>no qual a produção científica se processa. Em que pesem todas as críticas sobre</p><p>os conceitos e autores citados acima: uns porque analisam externamente o fenô­</p><p>meno da produção científica (Kuhn e Bourdieu), outros porque não conseguem</p><p>captar toda a complexidade etnográfica e o movimento interno e contextual do</p><p>tema (Latour e Knorr-Cetina), para os objetivos deste trabalho, as contribuições</p><p>foram fundamentais. Aproveito o conceito de campo de Bourdieu, para tratar os</p><p>conflitos de interesses e de competência; e a acumulação de conhecimentos; a</p><p>noção de creditação científica de Latour para mostrar os autores e teorias de</p><p>referência; e as idéias de prática transepistêmica e transcientífica de Knorr-Cetina</p><p>para mostrar a intensa interatividade leiga, técnica e transdisciplinar que atraves­</p><p>sa as relações entre os saberes antropológicos e da saúde coletiva. Ao mapear</p><p>esse mundo em construção buscarei focalizar e analisar as seguintes questões:</p><p>• relações entre o enfoque disciplinar e a abordagem associada inter e</p><p>transdisciplinarmente no que concerne entre as duas áreas;</p><p>• tensões entre relações de cooperação e subordinação;</p><p>• ritmos, tempos e necessidades diferenciados entre a área da saúde e o enfoque</p><p>e a contribuição disciplinar da antropologia;</p><p>• cobertura de áreas de saúde pela antropologia e possíveis necessidades e</p><p>defasagens;</p><p>• interfertilizações das experiências interdisciplinares e pontos problemáti­</p><p>cos que exigem especial vigilancia epistemológica.</p><p>Os itens assinalados acima não serão tratados separadamente, constituindo-</p><p>se em objeto de reflexão transversal a ser processada no desenrolar do conjunto</p><p>do texto.</p><p>RAÍZES E IDENTIDADE</p><p>Em 1985, Everardo Duarte Nunes e Juan César Garcia coordenaram e publi­</p><p>caram uma obra de grande relevância acadêmica, denominada As Ciências Sociais</p><p>em Saúde na América Latina. No capítulo introdutório, Nunes (1985:31-79) te­</p><p>ceu algumas considerações sobre a Antropologia, as quais resumo aqui.</p><p>Os primeiros trabalhos da disciplina sobre o objeto saúde surgem a partir da</p><p>II Guerra Mundial, quando antropólogos europeus e americanos focalizavam os</p><p>países subdesenvolvidos como alvos preferenciais dos modelos de saúde públi­</p><p>ca, gestados nos moldes culturais dos chamados países desenvolvidos. Tratava-se</p><p>de projetos de compreensão de hábitos e costumes de outros povos e grupos, com</p><p>o objetivo de transmitir uma certa "ciência da conduta", através da educação</p><p>sanitária e da orientação para erradicação de doenças transmitidas por vetores.</p><p>Nesse texto introdutório, Nunes recomenda que vários trabalhos anteriores à dé­</p><p>cada de 50 deveriam ser considerados numa reconstrução arqueológica do saber</p><p>(Foucault:</p>
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ANTROPOLOGIA DA SAÚDE - Antropologia (2025)
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